Mesmo diante do revisionismo histórico – que somou a ideia de exploradora de povos e riquezas à imagem de mulher forte e inabalável que cruzou o século XX –, a morte da Rainha Elizabeth II causou grande comoção no mundo, mas em especial, claro, no Reino Unido. Uma fila de mais de 10 quilômetros de súditos se formou às margens do Rio Tâmisa para se despedir diante do caixão da mulher que comandou os britânicos por mais de sete décadas, na Abadia de Westminster.
Entre as milhares de pessoas contritas que esperaram sua vez na fila, um famoso chamou a atenção da imprensa mundial: ninguém menos que o jogador de futebol David Beckham, um dos ingleses mais famosos do mundo e agraciado com o título de Sir pela própria Rainha – honraria máxima da Coroa Britânica.
Beckham agradeceu, mas recusou o convite feito pela organização do funeral para passar à frente dos demais súditos. Ele entrou na fila na sexta pela manhã e só chegou ao caixão da rainha à noite. Em depoimento aos repórteres, o jogador afirmou que permanecer na fila permitia a ele “um sentimento de pertencimento”. “Algo como o que está acontecendo hoje é para ser vivido coletivamente”, resumiu Beckham que, ao longo das 12 horas de espera, comprou donuts de ambulantes e os dividiu com estranhos que também aguardavam na fila.
O comportamento de David Beckham parece ainda mais estranho aos olhos dos brasileiros. No país onde o imaginário coletivo defende levar vantagem em tudo, é quase impensável que alguém abra mão de um privilégio – quanto mais o sacrifício de permanecer de pé em uma fila por 12 horas! Na fila do supermercado, do aeroporto, dos lançamentos de livros: brasileiros gostam de passar à frente.
A fama de Beckham torna o episódio ainda mais constragendor para nós, acostumados que estamos a ver subcelebridades disputando camisetas de camarotes de festas e Carnaval. Quando os camarotes dos festivais de música passaram a vender ingressos para as áreas antes acessíveis apenas aos “famosos”, instalou-se o contrangimento. Como anônimos e famosos dividiriam o mesmo espaço? Foi preciso criar o curralzinho vip dentro da área vip. Coisas do Brasil.
Essa percepção errônea acaba se espraiando por outras áreas da dinâmica social, como a Justiça. As leis brasileiras oferecem uma série de condições – como o grau de escolaridade – como fator atenuante ou de privilégio mediante outros condenados, numa espécie de escala informal de cidadãos “que importam” e cidadãos de segunda classe.
O antropólogo Roberto Da Matta se dedicou a estudar o famoso “jeitinho brasileiro”, comparando o comportamento de brasileiros e americanos diante de situações específicas. Se por um lado, o estudioso destaca que o tal “jeitinho” dá ao nosso povo uma maleabilidade louvável para lidar com o inesperado, por outro lado é a raiz de práticas que nos envergonham como nação, como a corrupção, a falta de civismo e de educação.
Sem querer, David Beckham deu uma lição inesperada ao mundo: mais do que dinheiro, fama ou títulos, as pessoas se fazem respeitáveis por suas atitudes. Um belo recado para nós, brasileiros.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.