Salvo raras exceções, ela nunca é bem vinda. Há até quem bata na madeira três vezes quando ouve o seu nome. O poeta Manuel Bandeira chegou a defini-la como “a Indesejada das Gentes” em seu poema “Consoada”. O fato é que o entendimento sobre a morte varia de religião para religião.
Para os católicos, religião predominante no Brasil, a morte é uma passagem para a vida eterna. Já os budistas, acreditam em reencarnação. Segundo Buda, a morte é comparável ao ciclo de “dormir, sonhar e acordar novamente”. Os espíritas tem entendimento semelhante: acreditam na inexistência da morte porque o espírito é eterno. A morte, portanto, seria apenas o descarte do corpo material e o retorno da alma para o mundo espiritual, onde viverá até que ela esteja pronta para uma nova encarnação. Já o candomblé acredita na permanência da vida através de uma força vital e imortal chamda ori. A morte, portanto, não é o fim, mas uma mudança de estado e de plano de existência. Entre os judeus, a crença é que a alma é eterna e a morte é apenas o fim do corpo físico.
Mas a percepção sobre a morte também muda de cultura para cultura, de povo para povo. Os povos mesopotâmicos, por exemplo, enterravam os mortos com todos os seus pertences, além de comida, para garantir uma travessia sem dificuldades. Já as sociedades hindus incineravam seus mortos para os libertarem dos pecados, apagarem suas memórias e dissolverem sua identidade.
A sociedade africana apresenta um ponto de vista raro no mundo ocidental. A morte é um tema presente na vida de muitos povos africanos desde a infância, o que faz com que ela seja aceita de forma natural, como o encerramento de um ciclo orgânico e natural.
No Brasil, temos por hábito cultural fazer velórios com orações, flores e velas, seguido de enterros ou a cremação do corpo. Em outros países, como Estados Unidos, Suíça e Itália, os funerais são feitos em ambientes religiosos ou até mesmo em casa, onde se servem comidas e bebidas, sem nenhum constrangimento.
O México, por sua vez, tem uma relação muito peculiar com a morte: o Dia de Finados é celebrado com muita festa e alegria. É a comemoração da vida de quem se foi. Para os mexicanos, a morte é apenas mais uma etapa de um ciclo infinito, como um espelho que reflete a vida vivida e seus arrependimentos.
Somos um povo passional, apegado, caloroso, com dificuldades de dizer adeus, seja na esfera pessoal, seja na esfera pública, na despedida de grandes ídolos nacionais, como Ayrton Senna, Getúlio Vargas, Elis Regina, Mamonas Assassinas e Marília Mendonça, para citar apenas alguns dos velórios marcantes do último século. Porém, dois episódios recentes chamaram a atenção sobre essa visão um pouco mais leve e positiva acerca da morte.
Há algumas semanas, o grande ator e diretor de teatro Zé Celso faleceu em consequência de um incêndio em seu apartamento, em São Paulo. Apesar da morte trágica e inesperada, a despedida da genial figura da cultura nacional, foi feita em respeitoso clima de festa, no Teatro Oficina, do qual ele foi fundador. Quem via as imagens na TV, demorava alguns segundos para entender que se tratava de um velório: canto, dança, flores, uma espécie de tranquilidade diante da certeza da vida vivida em toda a sua potência criativa. As lágrimas, quando corriam, não soavam desesperadas, mas ao contrário, serenizadas.
Coincidentemente, alguns dias depois, foi ao ar na novela “Vai na Fé”, grande sucesso de público e crítica no horário das 19h, o velório da personagem Dora, interpretada por Claudia Ohana, vítima de câncer. Nada de capela em um cemitério, com todo mundo vestindo preto, aos prantos. Em sintonia com a pegada hippie da personagem, seu velório foi a céu aberto, em meio às árvores, com os amigos e parentes cantando e tocando instrumentos. A delicadeza do texto, da direção e da atuação dos atores atingiu em cheio os espectadores e não se falou em outra coisa nas redes sociais.
No livro “Outra Biografia”, em que narra, com bom humor, a luta contra o câncer, a cantora Rita Lee consegue ser precisa a respeito da “Indesejada das Gentes”: “Por que há tanta gente que até se benze quando tocamos no assunto? A morte é a única verdade, e cada dia a mais vivido é um dia a menos que se vive. Pra que fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor? Desta vida não escaparemos com vida”.
Que as recentes experiências de Zé Celso, Dora e Rita Lee nos inspirem a encarar a vida com mais esperança e a morte com mais naturalidade, beleza e serenidade.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.