Se é verdade que os brutos também amam, então também será que os eruditos tiram férias; infelizmente, não temos como verdadeiramente ‘parar’. Quem trabalha com arte (dita) erudita sabe que pausa e estagnação separam-se por uma frágil divisória; que ficar alerta e antenado com tudo que se passa ao nosso redor, percebendo as ligações entre a arte do passado e a do presente, atualizando-a, é vital. Estou de olho em como a ópera, dança & música de concerto renascem na Europa. Na segunda-feira, dia 17 de maio de 2021, a Royal Opera House de Londres estréia a ópera “La Clemenza di Tito”, de Mozart; seu primeiro espetáculo desde 14 de março de 2020. Ainda que permaneçam algumas restrições, o sucesso do lockdown, da conscientização e, especialmente, da vacinação, permitem à Arte renascer. E junto com a Ópera ressurgem Museus, balé, música de concerto e quase toda forma de expressão artística que nos define como civilização, tendo nos mantido relativamente sãos durante toda pandemia.
Essa ‘humanidade do conhecimento’ foi o que mais me chamou a atenção no filme “O Pai”, premiado recentemente nos Oscars. Muito já se disse da bela interpretação de Anthony Hopkins, do excelente texto e da direção sensível de Florian Zeller. Eu destacaria a profunda ligação do filme com a música erudita; forte, mas colocada de uma forma tão sutil que talvez alguns nem percebam. A música permeia toda a história, gerando quase que um fio condutor. O pai escuta música barroca em antigos discos de vinil, submerso em um mundo (ainda) todo seu; escuta no rádio a imortal voz de Maria Callas, interpretando a famosa ária ‘Casta Diva’, da ópera Norma, de Bellini. Os momentos musicais mais sutis, no entanto, são as inserções da ópera “Os pescadores de pérolas”, de Bizet. O efeito que os trechos dessa ópera conseguem produzir — em especial a ária “Je crois entendre encore”, na voz do tenor francês Cyrille Dubois — tornam a solidão e a melancolia daquela vida crepuscular ainda mais emocionantes. Coisas impalpáveis que a arte consegue criar.
Será que um dia, em meio a tanta ‘des-educação’ e desprezo pelo conhecimento, as pessoas voltarão a perceber a relevância da Arte e de toda forma de conhecimento? Esse pilar da sociedade dita ‘civilizada’ é posto em cheque quando nossas Universidades públicas ameaçam fechar suas portas.
Leio as notícias das dificuldades que a UFRJ passa e fico preocupado com o crescente descaso do nosso tempo à cultura e a toda educação em geral. A UFRJ — e todas as grandes universidade públicas brasileiras — precisam ser prioridade: “E ponto e basta”. Precisam estar a salvo da barbárie, da incultura, do obscurantismo.
Numa sociedade sem acesso à educação somos todos prisioneiros da grosseria e reféns das más intenções que parecem querer fazer perceber que a educação é um artigo em extinção e privilégio de poucos (que por ela possam pagar). Todos conhecem a força das ciências e dos serviços de saúde que universidades como UFRJ têm oferecido para a população, duas áreas dessa imensa universidade que assumem um enorme protagonismo em meio a pandemia e tocam diretamente a vida de milhares de pessoas.
Uma Universidade não tem partido, não é de esquerda, direita ou centro; é “Uni-“, o mesmo prefixo de “universal”: atende, escuta e dá voz a todos. Conhecimento conjuga-se sempre no plural.
Sou “cria” da UFRJ e parte orgulhosa dela. Passei pelas Ciências Sociais e terminei no Bacharelado e Mestrado em Música. Há 25 anos sou professor da casa e alí troco e compartilho conhecimento e educação. Na Música e nas Artes em geral, transformamos talento e sonho em técnica e profissão. Não sei se formamos divas e virtuoses, mas damos asas a novos professores, musicoterapeutas, regentes de coros em igrejas, pesquisadores da memória do país e tantas outras profissões associadas à arte que influenciam tantos cantos da sociedade. Se hoje eu tenho um perfil que leva o nome do Brasil e da Arte produzida em nosso país para o exterior, é em grande parte devido a parceria com a UFRJ.
Como cidadão, testemunho a importância do que é produzido nas maiores universidades públicas brasileiras — e lembremos que a UFRJ já foi um dia a “Universidade do Brasil”. A crise da UFRJ não vem de hoje, mas o que foi exposto é um problema atual. Apesar da pandemia e dos desafios econômicos, é inexplicável a situação em que vêm sendo colocadas, encurraladas, várias universidades públicas do Brasil. Não existir verbas para a educação pública, para pesquisa científica e produção de conhecimento, num país onde frequentemente discute-se o desperdício de verbas e recursos, é uma matemática de prioridades orçamentárias difícil de entender.
Felizmente, nos dias que seguiram-se ao anúncio da ameaça à sobrevivência da mais antiga universidade brasileira, a situação foi atenuada. Com esse alento financeiro, essa resposta imediata dos gestores e legisladores, resta um sopro de esperança — são precisamente nesses momentos que votos justificam-se ou não. Promessas eleitorais de mais verbas para educação nunca são escassas; mas verbas destinadas ao conhecimento não parecem seguir a mesma matemática.
Bilac, genial poeta, escreveu que “quando uma virgem morre, uma estrela aparece”. Se perdermos Universidades e artistas, nada aparecerá no céu; não haverá luz do conhecimento ou da felicidade, apenas a escuridão
Virgens Mortas (Olavo Bilac)
Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velho engaste azul do firmamento:
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.
Ó vós, que no silêncio e no recolhimento
Do campo, conversais a sós, quando anoitece,
Cuidado! – o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai sussurrar no céu, levado pelo vento…
Namorados, que andais, com a boca transbordando
De beijos, perturbando o campo sossegado
E o casto coração das flores inflamando,
-Piedade! elas vêem tudo entre as moitas escuras…
Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras!
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.