Não se trata de uma ópera “South American way”. Acabou de passar o ‘Dia Mundial da Ópera’, comemorado em 25 de outubro, data de nascimento de Bizet e J Strauss II. O “World Opera Day” tem o objetivo de chamar a atenção para a importância, popularidade e atualidade desta forma de arte. Na possibilidade de reunir diferentes expressões artísticas, parte de seu DNA mesmo, está a riqueza da ópera. O titulo é imponente, cheio de ‘balangandãs’, porém à altura do movimento materializado durante o encontro internacional promovido pelo Teatro Real de Madrid, em 2018. Vindos dos quatro cantos do globo, reuniram-se artistas e companhias líricas, gestores e produtores de ópera — e Dança e Música de Concerto — com o objetivo de dividir uma paixão comum e, claro, de produzir juntos com menores custos. Vários teatros do Brasil estiveram presentes, apesar da dificuldade de se planejar o futuro quando sofremos da excessiva rotatividade de cargos nos teatros nacionais.
Porém nem isso é o maior problema agora. Aliás, tão ‘final dos tempos’ é o tempo em que vivemos, que até mesmo o fantasma das dificuldades de se conseguir patrocínio deixou de ser o foco das noites insones. Nesse 2020 tão apocalíptico para todos que trabalham com o espetáculo ao vivo, o maior desafio deixou de ser — pasmem — a maldita alcunha de que Artes como a ópera, o balé clássico ou a música de concerto são elitistas. Aliás, é uma grande triste ironia ouvir repetidamente essa história do “espetáculo para poucos“; 9 entre 10 vezes, os que usam desse discurso do pseudo-elitismo raramente encontram-se nas plateias que acompanham ópera, balé clássico ou música de concerto com um envolvimento maior do que o de quem assiste a uma curiosidade, a algo exótico. Traduzida literalmente do italiano, “opera” significa tão somente “obra”. No caso, obra de arte, musical. É pena: perdemos todos com a separação, com esse ‘doce’ preconceito paternalista. Além do que, é para lá de injusto com essa fatia nada negligenciável da indústria cultural. Se o esporte molda um corpo saudável, e também por isso é tão reverenciado, não esqueçamos que as Artes moldam uma mente saudável.
Nos últimos sete meses a profusão de “streamings” fez com que todo dia seja um pouco dia de todas as formas de expressão artística, de cultura; quem não vive sem artes cênicas ou música — e a ópera é o maior exemplo da reunião de ambos — pôde acompanhar transmissões gratuitas promovidas pelos mais destacados teatros do planeta. Agora, algumas das mais importantes instituições culturais do país, como nossas melhores orquestras, após uma série de eventos on-line, sem público, cuidadosamente volta, aos espetáculos com platéia reduzida. Dentre os destaques, a OSESP e a Filarmônica de Minas, a Sala Cecilia Meirelles e o Teatro São Pedro; a Fundação Clovis Salgado, no Palácio das Artes de Belo Horizonte, transformou parte de sua programação em extenso ciclo de palestras e cursos de formação para jovens e profissionais. Se é verdadeira a expressão de que “o futuro dura muito tempo”, o investimento feito há décadas para a criação de instituições sólidas, hoje permite garantir e investir no futuro — e o investimento nos jovens artistas aposta em que haverá um futuro.
E onde está a Carmen Miranda? Explico.
Nessa busca de uma ‘nova’ ópera para o ‘novo normal’, aceitei fazer minha primeira Opereta. Nada menos que a célebre A Viúva Alegre, de Franz Léhar. Acho que todos os que trabalham em muitos dramas e tragédias rezam pela chance de mergulhar numa comédia e sorrir um pouco. Porém, como manda a Lei de Murphy, nem tudo são risadas…Para começar, essa pandemia, que por si só já é um tremendo balde de água fria em qualquer possibilidade de humor. A Covid estourou bem quando tinha de ir apresentar o projeto ‘in loco’ (sim, no mundo normal os contratos assinam-se um ano antes ou mais, dando assim uma chance das idéias amadurecerem), forçando tudo a acontecer por meios virtuais, com direito a fusos-horários de 5 horas de diferença. Sim, estamos falando de uma Viúva Alegre em Talim, na Ópera Nacional da Estonia! Por isso mesmo, por ser na ópera nacional deles, achei que tinha de levar algo de nosso. Foi aí que decidi unir Carmen Miranda e Hanna Glawari (a protagonista da Viúva), transformar a báltica Pontevedro do original em uma república latino americana no melhor estilo de Hollywood dos anos 1940s, tudo livremente inspirado numa idéia de exotismo latino, e puxar a ação da trama do século XIX para as dificuldades financeiras da Europa do pós-guerra.
Não é a primeira vez que, acompanhado de uma equipe de artistas latino -americanos, tento trazer um pouco do nosso jeito de fazer arte para o exterior. Usei o universo do Bispo do Rosário quando encenei para o Pink Floyd Roger Waters sua “Ça Ira”, em São Paulo, e ainda levei muito desse mesmo universo para o Don Giovanni, na Polônia. Claro, re-imaginar um clássico da opereta num novo contexto — e fazer disso algo minimamente lógico –, requer um bom tempo de estudo. Desejou o destino que o tempo que tinha separado para desenhar a produção e definir seus detalhes finais teve de ser divido com o de comandar a preparação de um protocolo para retomada de atividades artísticas, conversas com a FioCruz e dúzias de ‘lives’. Um sufoco, muitas noites de pouco sono e dias de muitas reuniões. Em maio do ano que vem, depois de estrear a opereta, eu conto se valeu à pena…Ah, já disse que vão cantar em estoniano ao invés do original alemão?!
Viva, A Viúva Alegre, aliás, Die Lustige Witwe, aliás, LÕBUS LESK, OPERETT DE FRANZ LEHÁRI!
André Heller-Lopes,
Diretor de óperas e Professor da Escola de Música da UFRJ.