Dito Erudito: discurso da meia-noite de verão
Sobre arte e um pouco sobre o que chamamos de "erudito"
Outra era a forma como pensei em começar. Carioca, irônico e bem-humorado (até que me pisem os calos, claro), com aquele charme e crença inabalável de Cidade Maravilhosa, era para estar escrevendo um elogio à volta da nossa “Vejinha”. Por um tempo longo demais, ela fez falta na nossa vida, especialmente a da cultura. E com a Veja Rio, volta esta coluna “Dito Erudito”.
Meu esforço pessoal para combater a ideia de que ópera (e toda forma de arte dita mais ‘clássica’) é para poucos eruditos, esta coluna tem muito o que dizer, estimular e defender. São tantas as coisas do nosso mundo de hoje que ainda tem tudo a ver com a arte que taxam de ‘elitista’, que pedirei mais uma vez ‘passagem’ para questionar o que é ‘dito erudito’. Cultura está ai, sempre presente nas nossas vidas, e meu papo é estimular o acesso.
Parei. O mundo parou. E não respirou fundo.
Outra era a forma como pensei em recomeçar. Porém veio esse vírus invisível, numa espécie de terceira guerra mundial, e conseguiu o impensável: parar o Rio de Janeiro — parar o mundo! Como falar de arte num momento em que o meio cultural está tentando ao menos manter o pescoço fora d’água? O poeta moçambicano Armando Artur escreveu uns versos que trago comigo há mais de duas décadas e que sempre me voltam quando os tempos são difíceis: “É preciso insistir na alegria e, como pássaros livres, inventar o hábito das manhãs abertas ao sol.”
Assim, no meio dessa pandemia, recomeçar a falar de cultura é minha forma de insistir na alegria. Um amigo português (desses de rede social, que não encontro há uns bons anos mas, do nada, reaparece para polemizar algo que postei) quis me convencer de que nesse momento só importariam três coisas: saúde, educação e, como o ‘gajo’ é advogado, acrescentou “justiça” à sua cesta-básica.
Claro que subscrevo à importância da saúde; e não imagino nenhum artista de verdade que, em sã consciência, possa achar que seus projetos mais sonhados valha tanto quando a vida humana. Educação, nem posso entender como funciona dissociada de cultura. Agora, quanto à tal justiça… Confesso que adorei a ‘bordoada’ virtual de outro amigo: nosso mundo ‘isolado’ está vivendo mais de filmes, live-streamings de música, concertos e óperas veiculados gratuitamente pelos grandes teatros, peças de teatro, literatura disponível on-line ou visitas virtuais aos museus, do que do intercâmbio de códigos penais e afins. O resumo da ópera é que, às vezes, nem percebemos a importância da cultura em nossa rotina. Aliás, em nossa sanidade mental. Um pouco como os dias de chuva e nublados no Rio fazem ter saudade da beleza da cidade banhada pelo sol.
Paramos, sim. Mas em breve vamos respirar fundo. Essa cultura presente e resistente, diversa, é prova de que, ainda que momentaneamente prisioneiros, somos essencialmente pássaros livres. Quem nos dá essa liberdade? Em grande parte a cultura, a arte, eu diria. É ela que nos faz lembrar que existiram e voltarão a existir manhãs abertas ao sol; que há uma primavera que em nós sempre re-principia.
DISCURSO DA MEIA-NOITE FRIA
(Armando Artur, 1986)
É preciso insistir na alegria e, como pássaros livres inventar o hábito
das manhãs abertas ao sol.
ainda que subsista a injustiça a fome e a miséria e o medo
é necessário insistir na alegria.
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André Heller-Lopes é encenador, professor da UFRJ e diretor artístico do Theatro Municipal do RJ.