Existe uma ópera baseada no filme “Os últimos passos de um homem” (com Sean Penn e Susan Sarandon, dir. Tim Robbins). Estreada em outubro de 2000 na ópera de San Francisco, “Dead Man Walking” tem ótima música de Jake Heggie, numa linguagem eclética com toques de folclore americano e musical, mas sem nunca deixar de ser essencialmente ÓPERA. A história do homem condenado à morte que vai redescobrindo sua humanidade em conversas com uma freira, ganhou libreto de Terence McNally, falecido há menos de 2 meses. Na aurora da pandemia, as luzes da Broadway não puderam apagar-se em sua homenagem. Os últimos passos deste homem, não existiram.
“Être, ou ne pas être?” — diz o monólogo central da ópera Hamlet, de Ambroise Thomas. Francesa Grand-Opéra, é uma das três melhores versões operísticas para a célebre tragédia homônima de Shakespeare (o ‘Amleto’, de Faccio e a recente versão de Brett Dean são as outras). No mundo da arte onde “ser ou não ser” é mais que “a questão”, tudo confunde-se com a efêmera atitude de existir. Assim, nos últimos dias deixou-nos o grande barítono francês do pós-guerra, Gabriel Bacquier. Se sua passagem foi devidamente marcada em algumas publicações do seu país, no Brasil partia alguns dias antes o mezzo-soprano Gloria Queiroz; pouco se escreveu sobre sua morte fora das redes sociais (no mesmo dia, ao menos outros três artistas de outras áreas receberam destaque). Dona de uma carreira de primeira grandeza na cena lírica nacional foi, possivelmente, a artista lirica que mais cantou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Sempre em arte haverá algo inefável — e as carreiras são efêmeras. Porém existir ou não existir, eis a questão da ópera, balé e música de concerto.
Assim, é difícil colocar em palavras a enorme importância da existência da cultura. Se há algo que a pandemia provou é que sem arte e cultura nossa vida seria intolerável. Não estamos mais falando de um entretenimento que apenas ‘faz bem’: é algo essencial. No sistema cultural alemão, aliás, a arte está intimamente ligada à sua identidade, ao seu DNA social. Os profissionais da industria cultural, do super-pop ao dito-erudito, trabalham baseados em esperança, sim, mas também de objetivos e não somente de sonhos. Em fóruns discutimos um futuro melhor e mais organizado, elaboramos propostas pragmáticas para contribuir com a sociedade, com governantes e políticos — sejam eles de qualquer lado. Falamos das necessidades econômicas do setor e, talvez como poucos outros, dos protocolos de segurança que, para o nosso, é uma questão de sobrevivência — ser ou não ser.
Não somos a Alemanha, onde mais pessoas frequentam os teatros do que jogos nos estádios. Mas é incontornável que a cultura é um setor que mexe com milhões e aporta muito para a economia. De forma direta ou indireta, através toda sorte de serviços que funcionam ao redor do mercado artístico, ou de turismo, hotéis, restaurantes, comércio é uma industria que faz-se presente. Nos EUA, a Opera America tem profissionais contratados atuando em sua defesa dentro do Congresso Americano. Além disso, e talvez mais importante no momento que devemos nos voltar para o humano, há milhares de excelentes artistas independentes, que produzem, atuam, cantam, pintam, escrevem e tocam o almoço para comprar o jantar. Eles não podem ser simplesmente abandonados flutuando no ar livre. Não devemos esquecer essas pessoas pois a situação excepcional de agora terminará em algum momento.
Nesse futuro, e que seja próximo, precisamos ter à frente dos olhos o plano B, no bolso o C, na cabeça o D e, nos sonhos se necessário, o Z. Depois, continuaremos o ‘jogo’. Porém é vital que numa crise como a que enfrentamos todos — juntos — a cultura receba (ao menos) uma parte do mesmo apoio dos outros setores da indústria. Na imensa indústria mundial, prepara-se um alfabeto de planos para os mais diversos cenários de retomada. Acontece que, enquanto a maior parte dos teatros do hemisfério norte planejam voltar depois das férias do verão europeu, nós do hemisfério sul (e que estaríamos em plena temporada) somos um modelo involuntário: muito do que der certo ou errado aqui, pode definir o futuro da cultura no mundo.
Salvo se descobrirem rapidamente um medicamento eficaz ou vacina, está claro que não existe mais ‘plano A’, o da volta à total normalidade. Por isso mesmo tudo torna-se para a cultura uma questão de vida e morte; enfatizo: para o humano em nós, uma questão de vida e morte. Quando um festival, um teatro, museu, cinema, livraria ou corpo artístico deixa de existir, pode nunca mais voltar. Somos uma equipe, e sentimos falta do conjunto artístico sem o qual não somos. Nesse momento mais do que nunca, vida, morte e amor podem ser, como nas palavras da poeta uruguaia Delmira Agustini um ”pensamento mudo como uma ferida.”
Enquanto os teatros, cinemas e salas de concertos estão adormecidos, há os que acreditam que estão mortos. Mas, acreditem, poucas músicas são mais lindas do que a da entrada do teatro enchendo, o murmúrio da platéia antes do pano de boca abrir ou a energia incrível gerada pelo final de uma grande performance. Mesmo momentaneamente vazios, não podemos esquecer que o palco é um lugar de alegria, sentimento, celebração e, por que não, de todas as politicas — pois são espaço do humano e de sua diversidade.
Como será a paisagem cultural depois de tudo isso, é outra questão. Sou pago como diretor para dirigir espetáculos ou um teatro. É meu dever preparar o teatro para tudo. O show vai continuar!
LO INEFABLE (Delmira Agustini)
Yo muero extrañamente… No me mata la Vida,
No me mata la Muerte, no me mata el Amor;
Muero de un pensamiento mudo como una herida,
¿No habéis sentido nunca el extraño dolor
De un pensamiento inmenso que se arraiga en la vida,
Devorando alma y carne, y no alcanza a dar flor?
¿Nunca llevasteis dentro una estrella dormida
Que os abrasaba enteros y no daba un fulgor?
Cumbre de los Martirios! … Llevar eternamente,
Desgarradora y árida, la trágica simiente
Clavada en las entrãnas como un diente feroz!
Pero arrancarla un día en una flor que abriera
Milagrosa, inviolable!… Ah, más grande no fuera
Tener entre las manos la cabeza de Dios!
André Heller-Lopes,
Encenador e Professor da EM/UFRJ, é Diretor Artistico do Theatro Municipal do RJ.