Dois eventos essa semana fizeram com que eu voltasse a pensar nos discursos da Primeira-Ministra Angela Merkel e da Rainha Elisabeth II. Talvez seja importante escutá-los à exaustão, como aquela ária favorita. O senso de drama está no meu DNA de fazedor de ópera, e ouvir um “we will meet again” dessa aniversariante da semana, aos 94 anos, foi como ser tele-transportado para a Londres pós-blitzkrieg. A fala dessa Rainha vinda de um mundo governado por outra ordem social foi um convite a encarar de frente o problema; uma ordem para sobrevivê-lo. Com palavras também cirurgicamente escolhidas, a outra mulher, esta da geração nascida na década imediatamente após a última guerra e criada dentro da antiga ‘cortina de ferro’, resumiu o feminino de todo um século.
O segundo evento da semana, o “Iom Hashoa” (Dia da Lembrança do Holocausto), inevitavelmente leva a pensar nesta guerra anterior, a Segunda. As consequências dos anos 1939-1945 continuam conosco, direta ou indiretamente. Na Arte, se você aproveita o tempo em casa para rever o clássico “As Aventuras de Robin Hodd”, com Errol Flynn, será fatalmente ‘pego’ pela deslumbrante trilha sonora de Erich W. Korngold. Primeiro compositor de reputação internacional a compor trilhas sonoras, emigrou para Hollywood em 1934 com ascensão do Nazismo deixando para trás uma carreira da maior importância em Viena (suas óperas como “A Cidade Morta” ou “O Milagre de Heliane” são deslumbrantes). Já se suas atuais noites de ócio levam ao seriado “Unorthodox“, estará vendo a história das consequências da guerra anterior na vida moça que foge de uma comunidade ortodoxa judaica em Nova Iorque. Digo ‘anterior’ porque penso que vivemos, agora, uma espécie de Terceira Guerra Mundial. Tantas foram as bombas usadas ao longo do século XX, que o inimigo agora parece ter escolhido nos surpreender com um ataque silencioso, invisível. Guerras têm esse poder torpe, o de ruptura com tudo que conhecemos. Não será surpresa se esta guerra contra o COVID19 deixar marcas duradouras.
Lá e cá, além das vidas perdidas e dos sonhos literalmente sufocados, as cicatrizes mais preocupantes para quem trabalha com cultura e educação estão precisamente no futuro de qualquer atividade cultural que demande a agora famigerada ‘aglomeração de pessoas’. Por toda Europa há esforços significativos para manter a indústria da Cultura presente; iniciativas pensadas para o lado humano, ajudando o artista a produzir de dentro da sua casa. Testemunhos da crescente compreensão da importância do setor na geração de empregos e movimentação da economia, tudo indica que os EUA também oferecerão em breve alguma forma de plano. Em todos os lados, a certeza de que existe um valor ‘imaterial’ na Cultura e que influencia diretamente na saúde (mental) das pessoas. Estamos mais consumidores de cultura em ‘streamings’ e ‘lives‘ do que jamais. No Brasil, começam a aparecer iniciativas nos Estados e Municípios, principalmente através de editais. Surgem como opção uma opção possível nessa quarentena (um dos maiores foi lançado semana passada no Rio de Janeiro , para todas as regiões do Estado). Resta, claro, o problema-chave do futuro: uns bons 80% de tudo que tem a ver com teatro, música, dança, artes plásticas, circo etc. pressupõe que pessoas reunam-se num mesmo espaço. Esse será o desafio a ser entendido nas cenas dos próximo capítulos…
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Há questões que sempre estarão abertas. Para não dizer que não falei de ópera, e de como ela é igualmente pertinente às questões atuais, esses dias escutava a cena final de ‘Capriccio’, de Richard Strauss. Última ópera do compositor alemão, já octogenário quando foi estreada em 1942, mostra a protagonista tentando saber o que é mais importante: música ou palavra? Envolta pela luz do luar, ela busca na cena final decidir se estaria apaixonada pelo compositor ou pelo poeta… Mil vezes o melômano escutará a cena e não terá certeza da conclusão a que o próprio Strauss chegou…em pela Segunda Guerra Mundial! Questões artísticas, intrínsecas ao ser humano brotam mesmo em meio ao exílio de uma tragédia. Dois anos depois a italiana Natalia Ginzburg citava Virgílio em um pequeno e poderoso relato de nome “Inverno in Abruzzo”: “Deus nobis haec otia fecit.” A escritora narra uma temporada que passou num pequeno vilarejo em Abruzzo; um exílio bucólico, pobre, certamente motivado pela política daquele tempo. Suas memórias de 1944 do que seria um isolamento forçado, inconcebível transformam-se numa narrativa de tempos felizes face ao golpe final do texto (nada de ‘spoilers’ aqui): “Pergunto-me se realmente aconteceu conosco”, escreve, “Mas esse era o melhor tempo da minha vida, e apenas agora, que se foi para sempre, eu percebo.”
Numa canção intitulada “Morgen”, o mesmo R. Strauss confere música — e que música! — aos versos do poeta anarquista John Mackay: “…e amanhã o sol brilhará novamente.” Compreender e aproveitar o tempo numa era de notícias que nos bombardeiam 24h por dia não é tarefa fácil. Isso está mesmo acontecendo conosco? É uma pergunta difícil. O otimismo pode ser uma opção consciente para entender esse tempo que vivemos como exílio ou pausa.
“Deus nobis haec otia fecit” — Deus nos permitiu este descanso.
Il vecchio mondo sta morendo.
Quello nuovo tarda a comparire.
E in questo chiaroscuro nascono i mostri.
Antonio Gramsci
André Heller-Lopes é encenador, professor da UFRJ e diretor artístico do Theatro Municipal do RJ.