Há vários caminhos. Notícias da provável abertura de teatros, cinemas e afins em São Paulo causaram surpresa num misto de alegrias e medos, ambos plenamente justificáveis. Esse texto é sobre convergências e divergências do tempo para escolher a melhor rota. O melhor caminho será saber discordar com humanidade e concordar com sabedoria: é o caminho não trilhado do ‘novo normal’.
No mundo da música de concerto, ópera e balé, será necessário técnica, sabedoria e inventividade para montar programações que mantenham acesa a chama de uma arte constantemente perseguida pela alcunha de ‘elitista’. Acontece que certos instrumentos (o canto dentre eles) podem oferecer mais desafios para a reunião de músicos num mesmo espaço. Mais delicado ainda, o caso do balé clássico onde os artistas estão forçosamente em contato sem um possível distanciamento. Não faltará vontade aos artistas de explorarem novos caminhos, refazer coreografias clássicas ou re-orquestrar peças conhecidas: serão os desafios de rotas ainda não trilhadas. Acrescente-se a isso que a vocação natural de todos os teatros líricos do planeta é um repertório que demanda a participação de algumas dezenas de artistas e equipes técnicas, divididos entre palco, fosso e bastidores — todos igualmente essenciais à magica do espetáculo como, aliás, a platéia presente. Esse diferencial da quantidade de participantes — e o musical é o ‘parente’ mais próximo — será decisivo para que a transição ao ‘novo normal’ possa ser um espaço de exploração do repertório (dito) erudito. Felizmente o talento humano é múltiplo e ao longo dos últimos 4 séculos produziu música para todos os gostos, tamanhos e bolsos. E se voltarmos no tempo para achar o futuro? O repertório Barroco e Clássico, com seus efetivos normalmente menores do que no romântico e moderno, anuncia-se como um parceiro da retomada.
Aquela música leva-nos pelos caminhos de um antigo Rio de Janeiro, histórico, dos séculos XVII ou XVIII, por exemplo. O Mosteiro de São Bento, uma explosão de estética em ouro e rococó, ainda que muitas vezes associado ao Canto Gregoriano, terá ouvido no período entre 1633-1798 muita música barroca. Descendo pela Praça Mauá e caminhando em direção à Rua dos Andradas, em lugar onde hoje está a Av. Presidente Vargas, iríamos dar na Casa da Ópera do Padre Ventura. Foi destruída pelo fogo em 1769, durante uma récita de “Os encantos de Medéia” de Antonio José da Silva (dito, “o Judeu”). Apresentava espetáculo com cantores ao invés de marionetes, e por isso acabou apelidada de “Ópera dos Vivos”. Na outra direção, onde hoje é a Câmara dos Deputados ao lado do Paço Imperial, as obras do barroco e do estilo clássico seriam ouvidas pelas janelas da ‘Ópera Nova’; a casa de ópera do ‘barbeiro’ Manuel Luiz. Construída em 1767 (ano em que nasce um dos maiores compositores brasileiros, o Padre José Mauricio, “filho de mulatos”) foi de um teatro ainda relativamente modesto erguido com o apoio do Marques do Lavradio, depois tornou-se um ‘Teatro Régio’. Reformado e ampliado para atender a chegada da família Real (no início do XIX), ganhou além do nome um novo pano de boca onde viam-se misturados a baía de Niterói e o Deus Netuno — tridente em punho num e carro puxado por cavalos marinhos, cercado de tritões, sereias e divindades. O repertório barroco é ainda hoje bravamente defendido por muitos artistas; o clássico parece ter mais sorte (Viva Mozart!) — porém bem que mereciam um espaço maior. Com tantos lugares dessa antiga cidade do Rio que ainda hoje existem, o barroco e o clássico não deveriam ficar tão restritos ao campo das memórias.
Curiosamente, a transição da tradição clássica para o romantismo foi personificada, em música, pelo compositor que neste 2020 é celebrado pelos seus 250 anos. Beethoven, cujas lutas pessoais e caráter revolucionário tornaram um ídolo. E não somente no ocidente: na China, nos primeiros anos após a Revolução Comunista, o compositor foi tido como símbolo do ideal de superar dificuldades para triunfar. Apesar de ser um “compositor revolucionário que libertava as massas com suas músicas” caiu em estranha desgraça após a Revolução Cultural dos anos 1960 que decidiu vê-lo como símbolo de uma cultura ocidental de cujo domínio desejavam separar-se.
De todas as histórias do período, terríveis, a mais marcante foi talvez a do músico Lu Hongen, regente da Sinfônica de Xangai. Como muitos artistas, foi preso por simpatizar com a arte ocidental. Em sua cela, cantarolava a Missa Solemnis de Beethoven e foi, por isso, condenado à morte. A um companheiro de cárcere pediu que um dia fosse a Viena e buscasse o túmulo do compositor: “Diga a Beethoven que seu discípulo chinês cantarolou sua música a caminho da execução.”
O ‘novo normal’, suspeito, virá acompanhado de novas músicas. O estímulo e o acesso de todos a todo tipo de cultura passa pela oferta, pela quantidade de espetáculos à população; de todos os estilos e gêneros — eruditos ou ‘pop’. E por que não? Um poeta irlandês uma vez escreveu: “walk on air against your better judgment”. Em arte, lançar-se nessa caminhada pelos ares e contra nosso ‘melhor julgamento’ é parte da essência do artista — o risco pode valer à pena.
The Road Not Takenby Robert Frost
Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;
Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,
And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.