Machado e seus fantasmas da ópera
O diretor fala um pouco da importância da ópera na vida de Machado de Assim, à luz de duas novas obras com seus textos
Há um bom tempo que planejava escrever algo sobre a relação de Machado de Assis com a ópera. Não sei o que esperava; talvez tenha sido o medo de acabar sendo superficial demais, ou absurdamente extenso. O fato é que algo me impediu e atrasou. deve existir algum oráculo divino que atrapalha a relação de Machado de Assis com ópera. Uma relação que teria tudo para ser íntima e para lá de frutífera. Só isso pode explicar o fato de que “o bruxo do Cosme Velho”, dono de histórias tão ricas, não tenha recebido mais do que meia dúzias de versões operísticas. Mesmo o famoso “Don Casmurro”, transformado em ópera no anos 1990 e estreado no Theatro Municipal de São Paulo, jamais conseguiu ser escutado no Rio de Janeiro — e olhem que a música é de um dos mais celebrados compositores cariocas, Ronaldo Miranda. Dentre as obras de Machado há desde narrativas realistas e tramas amor, até algumas obras que lidam com o oculto (e que, de certa forma, lhe valeram o famoso epíteto). Se nos seus livros há a paixão pela vida e a lírica não lhe retornou os amores. Pior, Machado de Assis foi um apaixonado pela ópera no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX e mesmo parte ativa da vida operística da capital do Império.
Pelos idos de 1840 a vida carioca revolvia ao redor do ‘Rossio’ (hoje, Praça Tiradentes) e de seus teatros,, o mundo das tipografias era dominado pela figura de Francisco de Paula Brito. Quem? Ah, leitor, quisera eu poder, no espaço desta coluna, cantar todas as glórias dessa outra figura de tanta importância para o movimento romântico brasileiro. Basta dizer que ao redor de seus estabelecimentos circulavam quase todos os escritores e artistas daquela época. Em que pese a forte influencia européia, não se pode esquecer que Paula Brito, homem preto, foi também um precursor da imprensa negra no Brasil publicando, entre outros, o jornal “O Homem de Côr” e lutando contra o preconceito. Voltando a Machado, foi num de seus jornais que o jovem escritor, ele mesmo descendente de escravizados alforriados, começou sua carreira. E tudo ali acontecia em meio às conversas sobre o canto lírico, as dançarinas e a política que permeava a rotina da “Sociedade Petalógica” de Paula Brito.
Com algum atraso, é mister comentar sobre duas novas novas óperas baseadas em contos de Machado de Assis: “O Machete” e “A Cartomante”. Curiosamente, ambas estrearam na mesma semana, uma no Rio e a outra em São Paulo, e envolvendo grupos de jovens artistas. Se ainda não foi a vez de ver reparada a injustiça histórica com Don Casmurro, ao menos algo move-se e Machado tem achado seus caminhos na ópera brasileira. Quem for buscar escutar essas obras no Youtube, encontrará duas óperas muito interessantes e diferentes, que bem merecem entrar em repertório — quem sabem serem feitas juntas? Encenada dentro da Escola de Música da UFRJ, “A Cartomante” foi, logicamente, uma experiência acadêmica que, apesar das limitações, permite escutar o brilho da invenção musical do jovem compositor Eduardo Frigatti. Há idéias, texturas, flertes com vários estilos e uma opinião sobre a obra de Machado que só fazem reforçar o fato de que a ópera (brasileira) está muito e bem viva, obrigado. No caso de “O Machete”, de André Mehmari, no Theatro São Pedro, de São Paulo, pode-se constatar um espetáculo sensível em que toda originalidade da música veio à tona; um deliciosa conversa tanto com a música popular brasileira quanto com citações de clássicos, instrumentação inventiva e inteligentes recursos de linguagem.
Seria ótimo se mais obras assim pudessem vir à luz e, claro, fazer circular este repertório — não custa sonhar com uma ‘volta de Machado de Assis à ópera’, ainda mais se pudesse ser em algum teatro da Praça Tiradentes. Aquelas das quais participou, pelos idos de 1860, perderam-se; infelizmente dos libretos que traduziu ou adaptou, restaram apenas citações. A ópera nacional, nem todos sabem, foi uma paixão do ‘bruxo’; um amor de juventude que lhe ficou pelo resto da vida. De sua juventude passada na ópera, três décadas mais tarde, em 1877, ainda tinha viva memória:
“[…] eu fui um dos cavalos temporários do carro da prima-dona, nas noites da bela Norma! Ó tempos! ó saudades! […] A Candiani não cantava, punha o céu na boca, e a boca no mundo. Quando ela suspirava a Norma era de pôr a gente fora de si. O público fluminense, que morre por melodia como macaco por banana, estava então nas suas auroras líricas. Ouvia a Candiani e perdia a noção da realidade”.
O grande escritor Machado de Assis, um “cavalo temporário”? Sim, pois era costume que os jovens diletantes, os melômanos das décadas entre 1840 a 1870, desamarrassem os cavalos da carruagem das prima donas e puxassem o veículo, com a cantora, até sua casa ou hotel, como se fossem os cavalos. E sua paixão era, então, a cantora italiana mais famosa da época, o soprano Augusta Candiani, que chegou ao Brasil em 1843 e por aqui ficou. A imaginação de toda uma geração de artistas e intelectuais ficou marcada pela aura de sua voz. Outras prima donas apareceram, cantaram e foram cobertas de elogios, jóias e puxadas por “cavalos temporários” mais ou menos célebres que Machado…mas arrisco dizer que nenhuma marcou toda uma geração de jovens artistas românticos como ‘a Candiani’. Depois de retirada dos palcos líricos, foi atriz e professora de música, indo morar em Santa Cruz — onde hoje um grupo de moradores tenta resgatar a casa onde teria vivido e desta fazer um centro cultural. A Italiana Candiani é, de muitas maneiras, uma das primeiras ‘vozes brasileiras’ — e, assim como Paula Britto, tem seu papel na formação da identidade cultural brasileira pouco conhecido. Por sorte da literatura mundial, não falta reconhecimento a Machado de Assim. Mesmo assim, esperemos que estas novas óperas brasileiras sirvam para revelar um pouco desse outro lado do escritor, e deixar cantar suas histórias.
André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ