No meio do caminho, das Ficções e realidades pelas mãos da arte
Em cartaz no Teatro I do CCBB, o espetáculo Sapiens deveria ser parada obrigatória no Rio de Janeiro
No meio do caminho tinha uma pedra. No meio da cena tinha uma interpretação arrebatadora — duas aliás. Ali, no caminho final da Rua Primeiro de Março, no coração do centro do Rio de Janeiro, há algo de genial acontecendo.
Esta foi a impressão que me deixou a estréia de Vera Holtz, no monólogo Ficções. Idealizado por Felipe Heráclito Lima, foi escrito e encenado por Rodrigo Portella, em interlocução dramatúrgica de Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa. Para mim e para toda a platéia que lotou o Teatro do CCBB naquela noite chuvosa, tinha realmente uma pedra no meio do caminho: foi como se ela, dominando a cenografia (de Bia Junqueira) tivesse caído sobre nossas cabeças e deixado a todos atordoados. Tontos de arte e melhores que nós mesmos ao entrarmos no teatro, terminamos a noite com a sensação de que atrizes como Vera Holtz são, meio, pedra e caminho — tudo ao mesmo tempo. Com esse tipo de talento e paixão de estar em cena explodindo pelos poros, todos os caminhos levam à Vera.
E, em verdade, não tinha apenas uma pedra no meio do caminho: tinha também o músico Federico Puppi. Era um diálogo de sonhos entre o autor e intérprete da trilha sonora e a diva com quem dividia o palco. De repente, somos jogados numa partita de Bach para violoncello solo que insere-se perfeitamente no texto: haveria melhor tradução musical dos conceitos descritos no livro Sapiens de Yuval Noah Harari, obra que é o ponto de partida do espetáculo Ficções? Gênio humano canta em cada nota daquela obra. Por si só esse dueto já justificaria estar dedicando uma coluna “dita erudita” a um espetáculo de tanta musicalidade. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas” é uma forma de usar Drummond para descrever o espetáculo em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro — e, falando em o que a retina vê, é impossível não falar de tudo que a luz do Paulo César Medeiros sugere e revela; o mínimo de cor para o máximo de efeito. Nunca me esquecerei também, que no meio do caminho do espetáculo tinha um monólogo que cai sobre a cabeça de todos como uma pedra de realidade. E ali, mais uma vez, Vera Holtz torna-se inesquecível em nos lembrar da realidade a nossa volta: no desespero dos personagens daquela fala está talvez exposta a fatal impossibilidade de cooperação entre as pessoas. Há uma porção de nós, Sapiens, que até consegue ser mais poderosa que nossos ancestrais — mas esse poder nem sempre não os torna mais felizes que nossos antepassados. Especialmente, não podemos esquecer que não somos mais felizes que miseráveis à nossa volta, mas sim parte responsável de um todo. Realmente, a cena teatral carioca tem tido muita sorte em contar com espetáculos que quebram ou desafiam as barreiras entre teatro e música.
O livro “Sapiens – uma breve história da humanidade”, de Harari, indaga se estaríamos usando nossa tão singular capacidade de construir ficções (coisas como nação, leis, religiões, sistemas políticos, empresas etc) para atingir coletivamente uma vida melhor. Não há resposta à vista mas há um baita espetáculo em cartaz para nos fazer pensar sobre o assunto. Pode até chama-se Ficções mas é, graças aos deuses do teatro, de uma enorme e necessária realidade… como uma pedra que tinha no meio do caminho.
No Meio do Caminho
(Carlos Drummond de Andrade)
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.