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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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No Teatro Poeira, um quarteto para os novos tempos e espectadores

O Dito Erudito flana pelo teatro de prosa e encontra música de câmera nas mãos de quatro excelentes atrizes

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
23 ago 2022, 23h40
O quarteto fantastico de O Espectador
O quarteto fantastico de O Espectador (Nana Moraes/Divulgação)
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Por Dionisío e por Apolo, não sou crítico de teatro! Não mesmo. Porém teatro, ópera e dança, vez por outra, confundem-se; numa obra teatral, há uma delicada partitura de fala e dinâmicas, como numa sinfonia de câmara ou num quarteto de cordas. Assim é o espetáculo “O espectador”, em cartaz no Teatro Poeira, com quatro atrizes afinadas como um delicado quarteto de cordas.

Há um momento em que Renata Sorrah senta-se num canto e, filmada em close-up, tem seu solo. Uma aula de emoção; quase um guia de como ser uma grande atriz. Acho que foi ali que pensei no quinto movimento do “Quatuor pour la fin du temps”, de Olivier Messiaen. O compositor francês reúne violoncelo e piano num canto infinitamente lento e estático, sublinhado por acordes; tudo é simplicidade e máxima emoção — como a cena diante de meus olhos. O “Quarteto para o final dos tempos” foi composto em 1941, enquanto Messiaen era prisioneiro de guerra dos alemães. “O Espectador” é um quarteto para o início dos novos tempos. Não deve ser perdido.

O quarteto do francês estreou no cativeiro, mas ali em Botafogo estamos muito longe das prisões (incluindo aquela em que vivemos há 2 anos): é um espaço de liberdade, onde a alegria de estar de volta à cena começa na recepção de olhar atento de uma das donas da casa, na liberdade com que explica o começo, ou na força do encontro de cores dos figurinos e na festa de palavras da cenografia em “preto, branco e palavra”. Quartetos não costumam ter árias de bravura, mas esse tem várias. O solo absolutamente despudorado de Ana Baird é uma grande ária para deixar qualquer La Traviata com inveja. Imagino que nunca lancem um ‘making of’ da peça, se o fizerem suplico para que os ensaios dessa cena sejam incluídos. É imperdível.

Qual a história da peça? Difícil explicar e talvez nem seja necessário buscar uma história ou narrativa. “O Espectador “ é uma dessas coisas que foi seguramente ensaiada à exaustão, mas que dá essa maravilhosa ilusão de ser uma improvisação. O tema, arriscaria dizer que é “celebrar”. Se toda festa tem um mestre de cerimônias e todo quarteto tem seu primeiro violino como guia, ouso dizer que cabe à Andrea Beltrão esse papel. Ela é a dona da festança que parece inundar tudo de humor; aquela anfitriã que recebe com um sorriso aos amigos espectadores e mantém a noite divertida. Ser engraçado com inteligência e crítica é, mais do que nunca, essencial. A peça levada pelas quatro virtuoses não é Teatro do Absurdo, embora seja absurdamente difícil fazer teatro dessa qualidade no Brasil dos nossos dias — e a pergunta ‘Quem é o criminoso?’escrita na parede pode dar margens à muitas interpretações… Porém, ali naquele espaço, o que se testemunha é muito mais do que um único gênero: é algo criado e atuado pela ‘absurda’ oportunidade de estarmos todos ali, juntos, vivendo teatro em presencial, e esta é a grande estrela de uma noite que ninguém deveria perder.

Não poderia terminar sem parar um instante no cena final, na delicadeza de Marieta Severo. Volto a pensar no tal quarteto composto por Messiaen quando falo desse monólogo, e mais especificamente sobre seu último movimento. Extremamente religioso, o compositor encerra sua obra com um outro “louvor”, mas dessa vez ao humano que, ressuscitado, nos comunica a vida. Na figura da mulher de lindos cabelos brancos e vestida de vermelho, a voz deste violino solista é toda doçura; sua lenta ascensão ao agudo fala de algo humano, mortal, subindo em direção a uma força superior. Naquela que talvez seja a situação menos propícia à criatividade, o compositor francês prisioneiro traduziu aquilo que descreveu como “a criatura tornada divina indo em direção ao Paraíso”. Num dos melhores teatros que o Rio de Janeiro possui atualmente, na noite fria que se encerrava, escutando a fala da outra anfitriã, pensei nos paralelos entre a obra de Messiaen e a que criaram Diaz e Abreu a partir da peça do romeno Matèi Visniec. Foi meio inevitável escrever esta crônica e pensar que um teatro assim é totalmente popular e para todos, apesar de poder ser dito erudito… “O Espectador” é um espetáculo de palavras e idéias a que dão música e vida às virtuoses Ana Baird, Andrea Beltrão, Marieta Severo e Renata Sorrah. É mais do que justo que as temporadas estejam lotadas e que novas datas tenham seus ingressos disputados a tapa.

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André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ

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