Meus caros amigos leoninos perdoarão se eu começar este texto falando não somente de seu bom coração, que conforta com palavras ou atitudes generosas, mas também de como gostam de estar no centro das atenções. E que mal há em ter platéia e ser reconhecido? Eu, canceriano que sou, permito-me hoje meu momento de sol em Leão…
Acontece que estou orgulhoso, feliz mesmo: neste sábado, dia 8, estréia no Festival de Inverno do Rio de Janeiro e inteiramente on-line, nossa pequena ópera “Festim em tempo de peste”, do russo César Cui.
Sete artistas espalhados por lugares tão diferentes como Rio de Janeiro, Copenhagen, Brasília, São Paulo ou Jundiaí, e que decidiram juntar-se para pensar e produzir, tocar e cantar, gravar e editar uma ópera tão ao sabor do nosso (estranho) tempo. Ainda não acredito que consegui convencer cinco brilhantes cantores líricos brasileiros e ainda um baita maestro/pianista para embarcar nessa viagem. Gravar uma ópera completa nestas condições e com estes desafios, em russo e com legendas, é uma jornada inédita. Sinceramente, não sei de algo parecido no país ou na América Latina; pelo mundo afora vi poucas coisas relativamente parecidas. Sete artistas reunidos pela arte — ainda que distanciados — e para interpretar uma ópera em tempos de pandemia. Um banquete criado por amor à Arte e para remar contra a corrente; talvez pelo puro prazer de reafirmar nossa capacidade de re-invenção e desafiar o silêncio e vazio a que deseja-se condenar teatros líricos pelo mundo afora.
No cardápio desse festim, a música de César Cui (1835-1918), russo do ‘Grupo dos Cinco’, que beneficia-se do texto de seu famoso compatriota, o escritor Alexander Pushkin (1799-1837). Tomando o conto das “Pequenas Tragédias” para criar uma música realmente intrigante e de formas fluídas, o compositor usa de um estilo ‘arioso’ que culmina justamente no canto nostálgico e lamentoso da personagem do mezzo-soprano, uma prostituta escocesa (isso porque, no original, a obra passa-se durante a Grande Peste que assolou Londres há muitos séculos). O clímax central, devastador, acontece quando os delírios do festim são interrompidos pela passagem de uma carroça carregada de cadáveres e guiada por um cocheiro negro. Em meio ao desconforto geral, o soprano desmaia. Neste Anjo da Morte, Pushkin, grande poeta russo que poucos lembram ser neto de um Africano que servia ao Czar, orgulhosamente marca suas origens. Tudo uma preparação para a aparição do Sacerdote; personagem que funciona como os olhos da consciência de cada um dos participantes deste irresponsável, senão diabólico, festim. São as palavras do religioso que ganham um poderoso novo sentido neste nosso mundo de pandemia. O questionamento da consciência de todos pela responsabilidade social, pelos direitos individuais e pelo respeito ao sentido precioso de vida. Curiosamente, os dois homens presentes ao banquete, o tenor esperançoso e o barítono que evolui do negacionismo para o remorso, são descritos apenas como um jovem e ‘Presidente’.
Composta em 1900 e com duração aproximada de meia hora, a ópera “Пир во время чумы” trata de quatro personagens reunidos para um mórbido banquete em meio à peste que assola o país. Poucas obras do repertório lírico poderiam ser mais atuais do que uma que fala de um “Festim durante a pandemia”. É uma obra de resistência que existe hoje graças a parceria de Gabriella Pace, Luisa Francesconi, Giovanni Tristacci, Vinicius Atique, Murilo Neves e Ira Levin. Da mesma maneira, nada mais perfeito que estreá-la dentro de um evento tradicional do inverno do Estado do Rio de Janeiro e que há anos acontece graças à perseverança cultural de Myrian Dauelsberg e de sua Dell’Arte. Depois, ela ficará disponível gratuitamente em diversas plataformas.
Uma ópera que pode ser considerada breve, mas cujo espírito e mensagem são enormes.
FESTIM
A esperança, a memória e a alienação reuniram-se para festejar.
Seu anfitrião, a poesia amargurada, presidia.
Alimentavam-se e bebiam a melancolia de um sabor perdido.
Tentaram não olhar a morte que lhes era servida.
Precisavam não enxergar.
Não tinham líderes nem limites.
Eram órfãos de um destino que nunca conheceriam.
A consciência chegou como uma oração.
Não convidada, colocou a todos de joelhos;
Seus olhos verdes confundiam-se com o translúcido das garrafas.
A poesia tornou-se mais amarga e virou revolta.
A alienação não resistiu à passagem do cortejo dos mortos.
A memória ficou presa em si mesma.
A oração foi em vão.
Apenas a esperança, esse jovem, observou.
Não se deixará alienar nem ficará perdido nos dias que já passaram.
Sua poesia é canto de revolta.
De volta.
No final, a esperança olha o vazio:
Ela também é um jovem espectador poderoso
E que um dia despertará.
André Heller-Lopes,
Encenador e Professor da UFRJ, é Diretor Artistico do Theatro Municipal do RJ.