Quem é contra o tenor? Saiba mais sobre uma voz rara (ou falsa)
O contratenor Orliński apresenta-se no Municipal nesta quinta e, no dia 12, o soprano Gabriella Pace em uma 'noite francesa'
Nesta quinta-feira a Dell’Arte traz ao Municipal do Rio uma estrela da lírica contemporânea: o contratenor polonês Jakub Orliński. Se houve um tempo em que o Rio de Janeiro era parada obrigatória das grandes estrelas internacionais da ópera, dança e música de concerto, agora o panorama é outro e essas raras ocasiões tem de ser motivos de celebração. Os antigos frequentadores do Municipal não cansavam de contar as histórias de Milanov, Nureyev ou Rubistein (e das jovens Callas e Tebaldi, em 1951). As gerações mais recentes, muito menos terão o que contar — com honrosas exceções: talvez Jessye Norman ou uma crepuscular Caballé (mas ainda cheia de glórias); Te Kanawa, fria feito um iceberg; Millo, gloriosa, nos anos 80, e lembrando a Santa Ceia de Da Vinci, em 2017. Ficou na memória Domingo ao lado do imenso Fernando Teixeira, Alicia de Larrocha ao piano, Celibidache regendo, às coreografias de Makarova e as sapatilhas de Zakharova, Platel, Bujones ou Bocca… Eram muitos.
Pausa para suspiros…
Sem saudosismo, o que a geração atual, que poderá testemunhar? Em 2019, a série Grandes Vozes, é verdade, trouxe ao Rio Oropesa, Pratt, Fabiano e Grigolo — e outras teriam vindo em 2020, não fosse a famigerada pandemia do Covid-19. Mas o projeto ficou parado. A pior constatação é a de que boa parte das vezes as estrelas que apresentam-se na América Latina, fazem apenas a ponte aérea São Paulo-Buenos Aires. Por sorte, bons ventos trazem alento: a DellArte (que sempre oferece grandes solistas instrumentais e cia. de dança) já trouxe em 2022 o estrelar tenor polonês Beczala, e agora brinda o Rio de Janeiro com o contratenor polonês Jakub Jozéf Orliński. Uma semana depois, o Theatro Municipal oferece um concerto de repertório todo francês, e pensado ao redor do talento do soprano Gabriella Pace. Cereja no bolo, esse espetáculo do dia 12 de agosto marca a estréia do carioca Felipe Prazeres como maestro titular da Orquestra do TMRJ. Há um bom bocado que celebrar!
Mas, o que é um contratenor? Em que se difere do tenor ou do baixo? Do soprano ou do contralto (sim, assim mesmo no masculino, como é mais historicamente correto declinar o gênero)? Bom, a grosso modo trata-se um cantor masculino que usa seu falsete; com esse registro de voz, alcança um timbre e uma altura vocal semelhante ao do contralto ou meio-soprano. O cantor treina um som ‘falso’, dito “de cabeça” — mas há controvérsias. O countertenor da Inglaterra, confunde-se, na Itália, com o Alto e, na França, com o haute-contre — estilos muito diferentes um do outro, para gêneros ainda mais diversos. Uma curiosidade é que por vezes os contratenores floresceram na música sacra, porque proibíam-se mulheres de cantar nos cultos das igrejas católicas. O contratenor é, ainda, totalmente diferente do castrati — voz criada através da castração de meninos antes de passar pela mudança vocal da puberdade — e também do Sopranista. Essa última, voz mais aguda com alcance agudo de um soprano, pode ser percebida no jovem cantor brasileiro Bruno de Sá, que acaba de lançar seu primeiro CD na Europa.
Resumo da ópera: vale ultra à pena correr para escutar esse artista ‘barroco-pop’, com sua voz delicadamente planejada, e compará-lo a uma das melhores vozes naturais de soprano do Brasil, Gabriella Pace. De canja, para os que conseguem ocupar dois lugares ao mesmo tempo, uma excelente pedida é a ópera O doido e a morte, do português Alexandre Delgado, na Sala Cecilia Meirelles! Ó tortura de se deparar com dias excelentes programações no mesmo dia e hora! Coisas da programação lírica do Rio de Janeiro.
Por que raios essas coisas boas acontecem no mesmo dia?
Pausa para mais suspiros…
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ