André Heller-Lopes

Por André Heller-Lopes, diretor de ópera Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
A volta do Dito Erudito
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Renata Tebaldi: a diva celebra 100 anos

Definida como “la voce d’angelo” e favorita do público carioca nos anos 1950, ela celebraria neste 1o. de fevereiro de 2022 seu centenário

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Atualizado em 2 fev 2022, 19h22 - Publicado em 2 fev 2022, 11h17
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  • Será coincidência que uma das mais famosas árias de Verdi, célebre na voz do soprano Renata Tebaldi, é justamente “Ritorna vincitor”, da ópera Aida? Se imaginarmos o culto ao redor da voz e da arte de Maria Callas, a (suposta) maior rival da “voz de anjo”, há uma certa ironia na idéia de “retornar vencedora.” Falecida em 2004, a italiana Renata Tebaldi parece no entanto ganhar cada vez mais admiradores. Não era uma diva trágica, não tem um ‘culto’ intelectual ao redor de seu nome e sua arte; era uma cantora extremamente popular, muitas vezes descrita como “amada” por inúmeros fãs ao redor do mundo. Sua voz de beleza ímpar, preservada em inúmeras gravações, está mais viva do que nunca neste seu centenário. A Tebaldi desafia até as regras do que é dito erudito.

    No livro “The Last Prima Donnas“, o grande meio-soprano Ebe Stignani referia-se à própria voz na terceira pessoa. Era como se falasse de uma entidade, de um fluxo de som que saía de si e penetrava na alma das pessoas como por um canal divino. Nascida em Pesaro, mesma cidade de Rossini, Tebaldi foi criada por uma mãe solteira e super-protetora; diagnosticada com pólio aos 3 anos (levou outros 5 para superar a doença), voltou-se para música como compensação por tudo que não podia fazer na infância. Foi seu passaporte para a vida e para fama. Iniciou sua carreira ainda na Segunda Guerra Mundial (há gravações em meio aos bombardeios!) e chamou atenção internacional ao ser escolhida por Toscanini para cantar na reabertura do Teatro Alla Scala, reconstruído em 1946. A voz da Tebaldi era um desses raros instrumentos tão ricos em harmônicos e de timbre tão perfeito que conseguia transformar a percepção da música que estava sendo interpretada. Grande parte dessa magia e da suntuosidade do timbre pode ser verificada nos registros ao vivo; ainda que com algumas eventuais dificuldades no registro mais agudo (especialmente a partir dos anos 1960). No estúdio, cuidadosamente gravada pelos engenheiros de som da DECCA, fazia parte de um grupo de vozes que contava ainda com Del Monaco, Bergonzi, Smionato, Bastiani ou Siepi — enquanto que a gravadora rival, EMI, tinha Callas, Di Stefano, Gobbi e Barbieri como seus trunfos. Uma guerra feliz que legou ao mundo belíssimas gravações de óperas completas.

    Era o alvorecer do som estéreo, em que grande parte do catálogo disponível apenas em mono, estava sendo regravado. Talvez seja aí que a suposta rivalidade entre Tebaldi e Callas tenha tomado forma. A bem da verdade, apesar de alguns (in)famosos comentários ferinos supostamente feitos por Callas (“Tebaldi é um violino Stradivarius tocado por um diletante; eu, um instrumento comum tocado por um gênio..”), aparentemente as duas divas nem se odiavam tanto. Oficialmente reconciliadas após 1968, diz a lenda que correspondiam-se com frequência — cartas que infelizmente jamais foram divulgadas. Devemos à Maria Callas um novo estilo de atuação para a ópera e o resgate de um precioso repertório do século XIX; quanto à Tebaldi, seu feitiço era a beleza e pureza de sua voz, como uma viagem no tempo rumo às vozes de ouro de um passado perdido. Se a primeira metamorfoseou-se a partir de 1954 numa figura elegante inspirada em Audrey Hepburn e vestida por Dior, numa espécie de mito que culminaria nas tragédias amorosas de sua vida pessoal e na perda da voz a partir dos anos 1960), a Tebaldi dos primeiros anos (1944 a 1953) era simplesmente um milagre de volume e beleza vocal que, diferente da rival grega, jamais se casou ou abriu sua vida privada à imprensa. O marketing dessas vidas e estéticas tão diferentes certamente ajudou na projeção de ambas no cenário internacional. Em outra famosa tirada atribuída à Maria Callas, esta teria dito que comparar a ambas seria como tentar comparar Champanhe com coca-cola…

    Curiosamente, o nascimento da rivalidade entre as cantoras parece ter nascido no Rio, em pleno palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro — ou mais precisamente nos bastidores da temporada de 1951. Estavam as duas cantoras contratadas para óperas e concertos na cidade, sendo que alternariam no papel título das óperas La Traviata e Tosca. Durante o concerto, Tebaldi atendeu aos pedidos do público e bisou sua ária, enfurecendo Callas — segundo a qual havia um acordo entre ambas que nenhum cantor concederia um ‘bis’. Uma recente emissão da Radio France dedicada ao centenário de Renata Tebaldi, aliás, completou o cenário contando que as duas divas já vinham se provocando justamente por conta da Traviata, ópera que a italiana havia cantado pouco antes no Scala e numa noite particularmente vocalmente…infeliz. Segundo a lenda, Callas, que iria estrear no Scala em poucos meses, teria levantado o assunto várias vezes, num misto de solidariedade e alfinetadas à colega — inclusive dando alguns não solicitados conselhos técnicos e interpretativos… Porém a explosão da rivalidade aconteceu mesmo quando o diretor do Municipal, percebendo a maior popularidade de Tebaldi junto ao público carioca, tirou uma apresentação de Tosca de Callas (!) passando-a para Tebaldi. Contam os antigos que um pesado cinzeiro de mármore voou pelos ares e por pouco não achou pouso perpétuo na testa de Barreto Pinto. Encerrou-se assim o que um grande colega inteligentemente chamou de “torneio lírico”, e com vitória de Tebaldi. Se Callas nunca mais cantou no Brasil, Tebaldi brindou o público do Rio e de São Paulo com cerca de uma dezena de óperas no TMRJ. Mais de trinta anos depois de sua última aparição, em 1954, ainda despertava suspiros e demonstrações de carinho: lembro-me do concerto em que Aprile Millo (cuja magnífica voz e maneira de cantar às vezes lembravam o de Tebaldi) parou antes do bis e disse que havia falado por telefone naquela tarde com sua ilustre antecessora, que mandava lembranças ao público do Municipal; uma enorme ovação saudou o nome de Renata Tebaldi.

    Para quem tiver vontade de conhecer mais sobre Renata Tebaldi, vale conferir o site da Fondazione Renata Tebaldi in San Marino: https://fondazionerenatatebaldi.org.

    André Heller-Lopes,
    Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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