Uma opinião sobre a perda do modus vivendi dos bairros através da padronização comercial e obras de grande porte
Nostalgia. A paisagem urbana tem mudado de forma tão constante, e se padronizado tanto ao mesmo tempo, que, no final dos anos 2000, o Bob’s Ipanema inseriu seus antigos letreiros a fim de manter viva a memória do local.
por Pedro Paulo Bastos
Comoveu-me recentemente a crônica publicada por Joaquim Ferreira dos Santos n’O Globo (10/02/14) sobre a despersonalização dos bairros cariocas ante os “novos tempos”. O autor de Feliz 1958 – o ano que não devia terminar dissertou de forma bastante mordaz sobre o surto de franquias e filiais de grandes estabelecimentos comerciais em praticamente todos os bairros da cidade, assinalando, deste modo, como tais lugares têm perdido a sua identidade outrora tão peculiar a cada um deles. Partindo da premissa de que todas essas transformações são frutos da “gentrificação” – o que não é lá aplicável para todos os casos –, Joaquim Ferreira dos Santos critica esse panorama chamando-o de “mesmice geográfica”.
Eu já havia pensado nisso faz algum tempo quando em 2011 o prefeito Eduardo Paes anunciou a publicação de um decreto que contemplaria a preservação do modus vivendi do Leblon como uma espécie de patrimônio imaterial da cidade. Em outras palavras, o decreto regularia as atividades econômicas exercidas ali a fim de preservar suas práticas e costumes – o tal do modus vivendi – que, embora afetado com a constante transformação do seu comércio ultimamente voltado para artigos de luxo, gastronomia requintada e serviços supérfluos, também estava chamando a atenção de muitas agências bancárias e filiais de farmácias e óticas que pareceram ser não muito bem-vindas por lá dado o seu caráter popular. As vítimas aí, na verdade, foram os tradicionais comerciantes, propriedades familiares tão queridas, que já não conseguem acompanhar a alta dos aluguéis tampouco a concorrência desleal das grandes corporações.
Eis que essa mesmice geográfica, ressaltada de forma muito oportuna por Joaquim Ferreira dos Santos, no entanto, não é novidade. Pelo menos fora do Leblon, porque isso já vem acontecendo há muitos anos em outros bairros cujos modus vivendis foram perdidos e que, por sua vez, não ganharam decreto algum protegendo a tradição de suas atividades econômicas. Razões não faltaram: o advento dos shopping centers nos anos 1990; a chegada das grifes internacionais; o fortalecimento das grandes cadeias do varejo em detrimento do pequeno empresário, aquele “de bairro”, que geralmente abria sua loja nas vizinhanças da própria residência e que prezava por um atendimento mais personalizado e intimista, contribuindo, além disso, com a dinamicidade econômica local.
Transformação. Reduto comercial tradicional da cidade, a Praça Saens Peña teve seu modus vivendi afetado com a remodelação de seu mix de negócios de acordo com reportagem de O Globo de agosto de 2000.
A cultura da diferenciação, que consiste no investimento em mercados inexplorados, apresentada no livro A Estratégia do Oceano Azul, de W. Chan Kim e Renée Mauborgne, é um artifício de competitividade que pode vir a fortalecer o poder do pequeno empresário sobre a presença maciça dos grandes empreendimentos comerciais que ofereçam serviços de massa e mais em conta. Todavia, a diferenciação está muito atrelada ao mercado de luxo ou a produtos que, precisamente por serem diferenciados, tendem a abarcar custos maiores. No caso do Rio, então, o pequeno empresário, nesse entendimento, acaba potencializando a sua força e a inserção do seu negócio não tão massificado, e, por conseguinte, com uma identidade mais expressiva, apenas nos bairros mais ricos, onde o alto poder aquisitivo justifica o investimento.
Bairros de classe média, onde também há uma grande dinamicidade econômica só que devido ao número abundante de consumidores, e não por causa de uma minoria pagando muito, são os mais afetados nessa problemática. Estes sim, altamente atrativos às grandes redes comerciais, sofrem com a despersonalização de suas paisagens e o abandono gradual de suas respectivas identidades. Copacabana, Catete, Tijuca, Vila Isabel, Méier, Bonsucesso, Campo Grande que o digam, atacados por filiais das Drogarias Pacheco, Americanas Express, Óticas do Povo, Leader Magazine, C&A, Subway, Megamatte, academias Smart Fit…
Se isso não fosse o bastante, a economia é tão instável que toda hora muda ou fecha alguma coisa. Tudo parece funcionar a curto prazo. Os serviços diferenciados, por exemplo, vão se renovando consoante a moda. Não há memória citadina que se sustente. E essa obsessão de se levantar prédios em qualquer terreninho disponível? Todos os prédios construídos são similares, reparem só, sejam empresariais, sejam residenciais. São erguidos em tempo recorde, loteados de espelhos, vidros e varandas praianas, na Barra ou em Vila Valqueire. Grandes obras urbanísticas seguem um padrão de “excelência” (ou seria conveniência?) que nem sempre dialogam com o seu entorno, vide a construção da Transcarioca no subúrbio, em especial o megulhão de Campinho e Madureira.
As coisas que acontecem ou funcionam hoje na cidade são majoritariamente um grande negócio. E como qualquer negócio, estão galgadas em interesses mais financeiros do que sociais, de interesse público.
Tudo isso faz parte do “sistema”? Realmente, faz parte. Tudo isso que acontece obedece a lei da oferta e da demanda? Pode ser. Tudo isso é “progresso”? Dizem que sim. Enquanto uns acabam aceitando esse panorama na marra, outros nem mesmo se deram conta de que vivem, hoje, numa grande mesmice geográfica. Ignoram, inclusive, os seus efeitos colaterais. O Rio está com um zero em personalidade, apontou Joaquim Ferreira dos Santos.
Honestamente, e há quem discorde, a falta de reflexão sobre esse tema é um grande atentado contra a nossa memória citadina e ao nosso modus vivendi, que deveria ser defendido de forma bairrista, sim, mas extensivo a todos os bairros, e não somente às áreas estratégicas e financeiramente gloriosas como costumam denominar o Leblon e adjacências.
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