O relato de um pedestre que resolveu passear pela avenida mais rodoviarista do Porto carioca
Canal do Mangue. A Avenida Francisco Bicalho com vista para o arco da Linha 1A do metrô e o Cristo ao fundo.
por Pedro Paulo Bastos
Tremedeira. Um corrimão que vibra tal qual o lustre de uma casa situada em alguma cidade que esteja passando por um forte abalo sísmico. As pernas por pouco não se sustentam sobre aquela abaladiça superfície aérea cujas placas de metal – ligeiramente corroídas – mostram, por intermédio de pequenos buraquinhos, o vaivém dos carros lá embaixo. Essa é a sensação que o pedestre tem ao cruzar a passarela da Avenida Francisco Bicalho junto à antiga estação da Leopoldina, na Zona Portuária. É um misto de insegurança com mal-estar. E não é exagero.
A Francisco Bicalho é conhecidamente um dos logradouros cariocas menos amigáveis ao trânsito de pedestres. Dotada de quatro pistas expressas que conectam a Avenida Brasil ao Centro, e vice-versa, seus canteiros centrais são margeados por um gradil que inibe a travessia de pessoas entre as pistas. Há quem se arrisque a pulá-las de modo displicente para não perder aquele seu ônibus que, oh azar!, faz sua parada apenas na pista vizinha. Sim, porque a Avenida Francisco Bicalho, além de ser o caminho à Rodoviária Novo Rio, é também um local de baldeações entre coletivos: dezenas de linhas importantes passam por lá, especialmente as que se destinam às cidades de Niterói e São Gonçalo.
A travessia mais aceitável e politicamente correta entre as pistas é a tal da passarela azul que contei a vocês, essa que palpita como um coração nervoso diante da impressionante vibração causada pelo fluxo pesado de veículos motorizados que passa sob sua estrutura. A prefeitura faz publicidade ao longo da avenida orientando os transeuntes da Francisco Bicalho a utilizarem-na como uma “proteção à vida”. Mas quem nos garante que esse pedaço de ferro velho não corre o risco de desmoronar conosco lá em cima?
Da abaladiça passarela da Avenida Francisco Bicalho é possível ter uma vista abrangente dos arredores, sobretudo da extinta estação da Leopoldina.
Avenida feita para carros: quatro pistas e o viaduto da Linha Vermelha que as cruza.
O canal do mangue, disposto centralmente na referida via, é na verdade um esgoto a céu aberto. O ajardinado que o circunda pode até ser meio verdinho, mas completamente desvitalizado. O mesmo vale para as emblemáticas palmeiras, que curiosamente parecem não morar ali – apenas jazem, como se não tivessem outra alternativa. Por sua vez, a desativada estação ferroviária da Leopoldina – originalmente chamada de Barão de Mauá – impressiona pela sua imponência ao mesmo tempo em que assusta pelo estado sebento em que se encontra. Alguém (ou muitos “alguéns”) teve a proeza de conseguir pichar toda a sua fachada, cujo relógio em algarismos romanos, pelo menos esse, por sorte, se salvou.
Meu tom é pessimista, eu sei. Fiquei pensando nisso enquanto caminhava em direção à Rodoviária, que se localiza no outro extremo da Avenida Francisco Bicalho. Nesse trajeto, fui perpassando por paredões igualmente cinzas e rabiscados, enquanto deparava com dezenas de operários uniformizados labutando sob um sol escaldante para um reles dia de inverno.
Com enxadas nas mãos, parte deles intervinha nas margens gramadas de uma pequena e nova rota que serve de acesso à Linha Vermelha. Outros, mais adiante, cimentavam um trecho da calçada devidamente interditado para aquele tipo de obra. Por um momento, questionei-me por qual razão ter-se o trabalho de interditar uma calçada logo ali, afinal, a Avenida Francisco Bicalho parece uma cidade-fantasma. Conta-se nos dedos o número de pedestres que zanzam por lá. Ao meu ver, tal impedimento se trata apenas de uma formalidade que, na prática, é uma contenção insignificante.
Uma avenida fadada à transformação: nos arredores, prédios são erguidos e ciclovias são implantadas.
Operários trabalham na calçada da Avenida Francisco Bicalho. Ao lado, a esquina com a Avenida Pedro II.
Mesmo assim eu desviei e, curioso, fui caminhando por uma rota à direita da Francisco Bicalho. Após ter passado por um galpão abandonado, percebi que estava diante do esqueleto de um novo prédio que está sendo erguido na Rua General Luís Mendes de Morais. Esse visual edilício sensibiliza o pedestre que se põe a avistar a paisagem ao redor: a chaminé da antiga fábrica Açúcar Pérola é rodeada por uma colina favelizada cujo sopé está rodeado de casebres largados, dando a entender que podem ser demolidos a qualquer momento a favor de uma verticalização moderna e orientada a um novo tipo de desenvolvimento urbano.
Nesse trecho, vê-se uma calçada pavimentada e padronizada quanto à vizinha. O curioso é que mesmo frente a um cenário que aparenta ao de um pós-guerra, certa faixa vermelha sinaliza que por ali, muito provavelmente, passará uma ciclovia, algo inimaginável tempos atrás. O projeto Porto Maravilha, já em execução, tem prometido transformar tal região carioca em uma cidade-modelo. Para isso, é necessário que se “ponha-abaixo” toda aquela fisionomia vetusta e “atrasada” da cidade antiga em troca de uma nova que disponha de feições mais vanguardistas e sustentáveis.
Voltei à Francisco Bicalho ainda mais pensativo, pois, no fim de contas, esta é uma avenida fadada à transformação. Donald Trump, por exemplo, o magnata estadunidense, prometeu levantar um complexo de cinco “Trump Towers” precisamente ali, naquela sórdida via expressa. Aliás, num todo, espera-se que a Avenida Francisco Bicalho se torne um corredor empresarial, hoteleiro e comercial nos próximos anos. Tal via é para onde se expande o “Centro”. É um eixo geográfico altamente estratégico, caminho para a zona norte, zona sul, ponte, rodovia.
Antiga passagem da linha férrea ainda permanece na paisagem da Avenida Francisco Bicalho, assim como a chaminé da fábrica Açúcar Pérola. Ao lado, sinalizações próximas ao terminal rodoviário.
Francisco Bicalho: uma avenida de diferentes rotas e direções.
Na altura do terminal rodoviário, guardas de trânsito apitam e gesticulam metodicamente sem parar, como se fossem operários subordinados a um regime taylorista de trabalho. Já a paisagem aérea é cortada por viadutos que se entrelaçam. Placas de trânsito verdes e laranjas indicam um cardápio de rotas e acessos que, mesmo inserido numa gigantesca estrutura rodoviarista, ainda não supera os panoramas similares de Los Angeles ou de São Paulo.
E debaixo desses arranha-céus urbanísticos, topei com um singelo mercado informal sufocado entre as pistas da Francisco Bicalho e o malcheiroso canal do mangue. O local é um passadouro de pedestres que ora se dirigem à Rodoviária com suas bagagens, ora se direcionam aos pontos de ônibus municipais. Sob um olhar crítico, é possível imaginar que quaisquer desses camelôs estejam proibidos de cruzar tal limiar entre o “novo” Porto e a velha cidade. O falatório e a variedade de produtos à venda dão ares babélicos a este trecho, que afirmo, convicto, ser o mais humanizado de toda essa delirante e esquisita avenida.
Em tempo: Esse ensaio fotográfico (“Francisco Bicalho: uma avenida fadada à transformação”) foi selecionado para participar da XX Semana PUR do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), que ocorrerá na Ilha do Fundão de 29 de setembro a 03 de outubro de 2014. Para ver a programação completa, veja aqui: https://goo.gl/Qf320t
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