Corredor cultural. Junto à Rua Primeiro de Março, o Largo do Paço concentra os maiores expoentes do patrimônio carioca e nacional. Ao fundo, a antiga Catedral – a Igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé.
por Pedro Paulo Bastos
Cercada por um alambrado tosco mui peculiar ao cenário das ruas do Rio nesta fase que precede as Olimpíadas de 2016, a estátua equestre de Osório, o general concebido herói pelos seus feitos durante a Guerra do Paraguai, no século XIX, figura de modo quase deprimente no centro do Largo do Paço. O militar, provavelmente orgulhoso de ter seu nome referido a outra praça da cidade (em Ipanema), mal pode conter o desgosto – suponho – de ver a cripta na qual um dia seus restos mortais foram resguardados ser alvo do recorrente vandalismo que assola o patrimônio público da cidade do Rio de Janeiro. Ideologias e antipatias à parte – afinal, o símbolo militar não é mais tão querido assim por grande parte da população –, este monumento é um dos tantos que residem há pelo menos um século à formidável e histórica Praça Quinze de Novembro, como é popularmente conhecido o local.
Por essas e outras que esse alambrado, pobre e desengraçado, circunda a estátua, talvez até mesmo diante do prenúncio de que o Carnaval está para chegar e que, portanto, aglomerações, por ali, precisarão ser evitadas. É, quem sabe, o Carnaval, a época do ano em que o Largo do Paço recebe mais visitantes, mesmo competindo com o sucesso notório de público da tradicional Feira de Antiguidades da Praça Quinze. Esta, que ocorre sempre nas manhãs de sábado, costumeiramente mantinha suas barracas sob as encardidas pilastras do Elevado da Perimetral, demolidas há pouco tempo. Com a interdição daquela área agora vasta e sem sombra junto ao Terminal das Barcas – predestinada, entretanto, a ser o mais novo belo passeio a céu aberto da cidade –, o simpático mercado de pulgas foi transferido para o quadrilátero que compunha o terreno original da Praça Quinze, compreendido pela Rua Primeiro de Março, o Chafariz da Pirâmide e o Arco do Teles.
É precisamente este terreno original aquele retratado por Debret em seu livro Voyage pittoresque et historique au Brésil, publicado graças à excursão do artista francês ao país entre 1834 e 1839. Quase dois séculos depois, o visual do Largo do Paço ainda preserva grande familiaridade com aquele da emblemática gravura que ilustra os mais diferentes websites e livros que dissertam de algum modo sobre o Rio imperial. O Chafariz da Pirâmide, obra artística do Mestre Valentim – o mesmo que idealizou o Passeio Público –, é o limiar entre a Praça Quinze aterrada – logo, contemporânea – e a Praça Quinze de antanho, isto é, o Largo do Paço primitivo. Daquele antigo cais ao redor do chafariz que aportou a Família Real Portuguesa em sua fuga à América do Sul, só restou o espaço equivalente a um reservatório desidratado sem qualquer sinalização turística pertinente à sua importância histórica e, por que não, urbanística.
Por outro lado, é justo aos sábados quando o Largo do Paço parece ganhar um novo sopro de vida, quase o simulacro da tão esperada revitalização local projetada pela Prefeitura e por muitos simpatizantes do Centro que o querem ver livre do estigma de bairro de trabalho. Na Feira de Antiguidades, vende-se toda sorte de produtos de segunda-mão, especialmente móveis, objetos domésticos e bugigangas que chamam a atenção de um público cada vez mais cativo. Esse cenário é curioso: o Largo do Paço já é, por si só, um majestoso e consagrado local de história que invade o imaginário dos mais introspectivos pedestres com fatos e divagações de possíveis episódios que já devem ter sucedido por lá, principalmente se levarmos em consideração a importância da Praça Quinze para a evolução política do Brasil.
Ao mesmo tempo, é entre as alamedas que compõem as barracas da feira onde os pedestres percorrem e invadem outras tantas histórias, essas, contudo, da vida privada, ali expostas, abertas à consulta, e taxadas por cifras que talvez não correspondam o mínimo do valor afetivo que um dia possam ter tido. A poeira que as envolve também parece fazer parte do valor dessas reinventadas mercadorias. Fotografias dos remotos anos de 1940 e 50 são manuseadas cuidadosamente por curiosos e possíveis compradores. Frases e mensagens escritas à mão, em impecáveis letras cursivas nos seus versos, entregam, de mão beijada, as histórias, felicidades e vitórias de famílias misteriosas. Nas capas dos discos de vinis, leem-se dedicatórias descartadas em razão do avanço das tecnologias audiovisuais. Nos brinquedos, notam-se os resquícios de infâncias supostamente bem vividas.
O Paço Imperial – antigo Paço Real e, anteriormente a esse, Paço dos Vice-Reis – funciona como museu em pleno corredor cultural do Rio de Janeiro, mas sem grandes apelos populares. Os pedestres perpassam o palácio desprovidos de curiosidade ou admiração. “Só quem é letrado sabe o valor disso aqui”, comenta em voz alta, de forma bronca, um dos visitantes à procura de interlocutores. No Rio, as aparências dos prédios parecem ser mais relevantes do que as suas respectivas memórias, e o Paço, verdade seja dita, não tem glamour algum. As atenções são parcialmente transferidas para a Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, essa sim sublime, à altura do título que um dia lhe outorgou Catedral do Rio de Janeiro. Os badalos do seu sino são sinfonia literal para os ouvidos cuja hora precisa de ressoo somente as carolas e transeuntes frequentes da Rua Primeiro de Março saberiam responder.
Em respeito à ambiência sonora dali, a cantoria dos artistas de rua tem início tão logo a santa melodia dos sinos cessa. Sob rococós e esculturas monásticas que impressionam (seja pela qualidade artística, seja pelo exagero), ouvem-se notas de um saxofone embaladas pela inebriante voz de uma cantora imersa na calma sensual do rhythm & blues. Não muito longe das bordas da Rua Primeiro de Março, entre as barracas da feira, arranjos tipicamente brasileiros ecoam da guitarra da moça de saia variegada. Enquanto o primeiro número musical procura se promover perante o público através da venda de CDs próprios, o último deixa à vista sobre o chão um chapéu preto de listras brancas cujas contribuições dos ouvintes, passivos ou não, podem ser depositadas ali sem cerimônia e de maneira muito bem-vinda.
No lado oposto ao do Paço Imperial, a Tabacaria Africana, que se gaba de ser um dos mais antigos estabelecimentos comerciais do Rio de Janeiro, resiste junto à Praça Quinze nesta desditosa época que compromete consideravelmente o seu negócio. Driblando a especulação imobiliária e a cultura antitabagista presente na sociedade, a tabacaria foi nomeada, recentemente, patrimônio histórico da cidade no setor de negócios tradicionais. Fundada em 1846, é vizinha de calçada de outro perseverante patrimônio carioca, o Arco do Telles, tão antigo quanto e que também tem assistido às mais importantes transformações políticas e locais: a transição de um Brasil imperial para um Brasil republicano e a destruição do legado do Rio lacerdista a favor do novo Rio de reformas do Eduardo Paes. É, todavia, ali, transpassando o Arco do Telles, onde o pedestre pode embarcar noutra semelhante caminhada cheia de história e crendices. Neste portal, surgem ruelas bem cuidadas e novos fundos musicais sabatinos que, em conjunto, acalentam prazerosamente o espírito e ressaltam, lá nas entranhas, aquele incorrigível orgulho carioca.
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