Enquanto o restante da zona sul transborda em agitação e caos, a Urca, o trecho mais pacato da região, continua vivendo dias de sossego à beira-mar
O Quadrado da Urca. Atracadouro em pleno coração do bairro é contíguo à Praça Cacilda Becker.
por Pedro Paulo Bastos
O bairro da Urca resiste bem. Enquanto a região vizinha, Botafogo, se entrega às transformações impostas pelo mercado imobiliário, a Urca segue com a sua vidinha pacata com ares de ilha de Paquetá na efusiva zona sul da cidade. Paraíso da calmaria, suas ruas são um verdadeiro convite ao descanso à beira-mar. Veja a Praça Cacilda Becker, por exemplo, no comecinho da Urca, onde não há espreguiçadeira alguma (aquele tipo de cadeira geralmente encontrado em clubes, perto das piscinas), embora devesse ter. Neste inverno sutilmente acalorado, agraciado por zéfiros imprevisíveis mas constantes, acostar-se em algum lugarzinho cômodo na referida praça seria nada mau após uma boa refeição. Explico-me.
A Praça Cacilda Becker, meus caros, está diante de um dos maiores cartões-postais da cidade: a Baía de Guanabara. Além da baía, é possível observar dali, igualmente, a sinuosidade da enseada de Botafogo e os jardins monumentais do Parque do Flamengo entremeados pelas pistas da avenida que o margeia. Ao abrigo de uma amendoeira, contemplar este horizonte em pleno junho carioca é uma tarefa pra lá de prazerosa. Você se esquece da vida, sente os raios solares incidindo airosamente na pele, desvia o rosto vez ou outra para vigiar o entorno (estamos no paraíso, mas ainda assim é um paraíso na urbe, o que requer prevenções) e regressa novamente o olhar a tal deslumbrante cenário, enquanto o mar reluz sob o céu das duas da tarde.
A Baía de Guanabara cheia de pequenas embarcações do Quadrado da Urca: o atracadouro chama a atenção dos transeuntes.
O panorama da Praça Cacilda Becker com o playground e o painel que homenageia a atriz.
No entanto, toda essa visão é secundária. A hipnose, ali, não se deve ao simples fato de termos a Baía de Guanabara como elemento de encanto: estamos, em primeiro plano, à frente de um atracadouro! A Praça Cacilda Becker é contígua ao Quadrado da Urca, uma espécie de marina que abriga vários barcos, caiaques e outros tipos de embarcações de pequeno porte. Não há luxo algum no Quadrado apesar da vizinhança ilustre, como o Iate Clube, situado naquelas proximidades. Ascético, o Quadrado da Urca reflete também um panorama bastante simplório fixado num dos bairros mais valorizados do Rio. Penso que a graça do passeio reside precisamente aí, nessa possibilidade de se distrair com a genuinidade ainda conferida ao espaço.
Como em toda praça há um jardim, por lá não seria diferente. Fincado sobre gramíneas não tão bem cuidadas, um painel acimentado mantém incólume a figura de Cacilda Becker, a famosa atriz pirassununguense morta diante de seu público em 1969, e, como vocês já desconfiavam, a personalidade que ilustra o nome deste logradouro. Duas imagens da artista, em diferentes momentos da vida, aparecem junto a um quadro emoldurado que sintetiza um pouco da sua biografia. Tratando-se de uma prestigiosa celebridade como Cacilda, essa homenagem poderia ter sido um pouquinho mais monumental. Paciência.
Intervenções artísticas divertem os fradinhos da praça, enquanto um furgão, carro difícil de se ver por aqui, estava paradinho ali na Rua Elmano Cardim.
Uma das discretas mansões da Praça Cacilda Becker próxima às calçadas floridas.
Paciência também para a precariedade estética da praça. É um ambiente acolhedor e bucólico, mas estamos falando da Urca, oras, onde todo o seu espaço urbano deveria fazer jus à beleza natural que o circunda. Diria que é uma praça inexpressiva, muito embora o seu parquinho pareça ser bem utilizado pela meninada local, assim como a sua área dispõe de certa notoriedade entre fotógrafos e artistas em geral. O cenário fabuloso dali demonstra ser um lugar interessante para aulas de fotografia ao ar livre. Os fradinhos, por sua vez, esse mobiliário urbano meio grotesco que a gente tem, receberam o apoio de grafiteiros que, através da arte, os transformaram em cabeças de bonecos Playmobil e outras caricaturas risonhas.
Por lá, é tudo muito sóbrio. Mesmo sendo época de Copa do Mundo, onde os ânimos estão compreensivelmente mais sobressaltados, das janelas dos apartamentos naquele eixo só quem fazia barulho eram as bandeiras brasileiras desabrigadas e, portanto, expostas à brisa da Guanabara. Das casas modestas, não ecoava um pio sequer, apenas o destaque de um ou outro candeeiro iluminado. As mansões são tão silenciosas e discretas que percebê-las não foi algo imediato. Camufladas por galhos e folhas, além da fiação torpe que ainda jaz na cidade, o traço clássico e sofisticado dos portões e das fachadas só encontravam poesia perante o rastro das pétalas vermelhas despedaçadas ao longo de suas calçadas.
A Noivinha, esse pássaro pequenino, diante da ponte da Avenida Portugal.
Ângulos da praça mostram tanto o bondinho do Pão de Açúcar em pleno funcionamento, assim como a disposição das casinhas simples ao longo da Rua Urbano Santos.
Apanhei a bicicleta que descansava intacta próxima às caçambas da Comlurb, por onde uma Noivinha inquieta e meio perdida sobrevoava. Dei algumas voltas no quarteirão formado pela praça, a Avenida Portugal e as ruas Urandi e Elmano Cardim disposto a admirar os diferentes ângulos possíveis de serem vistos dali. Logo atrás da Praça Cacilda Becker, por exemplo, resplandece o Pão de Açúcar, que dispensa apresentações, com seus bondinhos indo de lá pra cá em curtos intervalos de tempo. Já na estreita ponte da Avenida Portugal, onde alguns pescadores lançavam suas varas ao canal que desemboca no Quadrado da Urca, dividi espaço com alguns ônibus e automóveis enfileirados, incerto de se o clima pacato da Urca também se estendia à cultura do tráfego local.
E entrando à esquerda na Rua Elmano Cardim, na terceira ou quarta volta pedalando, esses meus míopes olhos de lince avistaram um pequenino azulejo na fachada do prédio situado naquela esquina. “Ave Maria”, era o que estava escrito, junto ao desenho de uma coroa que remetia ao símbolo da Família Real portuguesa. Estes signos católicos, tão lusitanos, estão sempre presentes nas arquiteturas mais antigas. Não sou de misturar religião com cidade, muito menos com literatura, mas acho que um lugar perfeito e hospitaleiro, assim, como a Urca, só pode ser coisa de Deus mesmo.
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