O perfil da Rua do Rosário, coração financeiro da cidade, numa manhã de sábado
Confluência de estilos. Igreja, comércio, sobrados e escritórios convivem numa mesma ruela.
por Pedro Paulo Bastos
São quatro carrancas barbudas estilizadas de onde nascem, a partir de cada uma delas, outras quatro pilastras sobre a fachada de um prédio. Esquadrias de ferro em losango preenchem as janelas retangulares – são doze no total. As portas, duas menores e uma principal, possuem dintéis escalonados charmosíssimos, um marco do art déco. Esse é o Edifício Beatris, na Rua do Rosário, que me conquistou à primeira vista enquanto passeava por lá. Ele fica bem próximo à babélica Rua Uruguaiana, onde há também a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que domina a visão principal da ponta “oeste” de quem caminha pela Rua do Rosário. O Centro, especialmente neste trecho, cativa o pedestre pela diversidade de exemplos primorosos da nossa arquitetura, embora seja preciso olhar para o alto para admirar tais monumentos; nos seus térreos, o comércio contemporâneo é influente na paisagem.
Influente e nostálgico, vale observar. Junto à Praça Olavo Bilac – que de praça não tem nada – fica A Camélia Flores, reduto de floricultura tradicionalíssimo no Centro e, por que não, na cidade. Foi inevitável não recordar daquele clássico comercial dos anos de 1980 e 90 com fundo musical a la Kenny G onde o narrador dizia: “Flores, presente que agrada sempre, A Camélia Flores”. O letreiro espelhado e a vitrine com ramalhetes coloridos e girassóis envasados à mostra quebra um pouco a percepção claustrofóbica que se tem, por vezes, de caminhar por essas ruelas e becos centenários. Também confere ares mais românticos à rua, embora seja muito difícil a gente embarcar nessa onda lírica com tanta sensação de insegurança ao redor. Passear pelo Centro, sobretudo aos finais de semana, como foi esse caso, merece certo cuidado.
O Edifício Beatris, exemplo do art déco na Rosário, com suas carrancas e dintéis escalonados, e a tradicional A Camélia Flores na Praça Olavo Bilac.
Caminhar pela Rua do Rosário com a devida apreciação significa olhar para o alto: é lá onde figuram os sobrados. Ao lado, bicicletas da pizzaria Parmê, com filial na rua.
Por outro lado, ir ao marco zero do Rio num sábado de manhã tem as suas vantagens. O dia a dia é tão corrido que a gente mal pára para atentar aos detalhes artísticos que povoam esquinas, prédios e calçadas de lá. Como eu disse no início, o grande barato do Centro é você caminhar olhando para o alto, onde muitos sobrados ainda figuram como suas imagens de outrora. Esse é um tipo de excursão que merece respeito, principalmente para nos darmos conta de como antigamente as construções eram muito mais interessantes e diferentes umas das outras. O Centro conseguiu preservar este encanto de Rio Antigo, mesmo que a antiga Avenida Central, hoje Rio Branco, que corta a Rosário, já tenha sido tão transformada a ponto de ter uma configuração espacial completamente distinta das ruas transversais.
É a partir deste pedaço, aliás, onde a Rua do Rosário vai deixando de lado seu caráter puramente mercantil e popular para adentrar a “modernidade” do Centro Executivo. O ponto de transição é a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa-Morte, situada num lote bem estreito da Rosário com a Rio Branco, cuja falta de conservação atrai moradores de rua e um forte cheiro de urina que embebe as calçadas do entorno. A partir dali, espigões predominam na paisagem, assim como elementos modernistas, como o mosaico de pastilhas de Paulo Werneck adornando a quina do edifício no referido cruzamento. Outro símbolo da cidade “moderninha”, a nova estação de bicicletas laranjinhas, a Bike Rio, destaca-se ali como que dando as boas-vindas aos passeadores, turistas e estudantes da ESPM no vaivém da Rosário.
A Igreja Nossa Senhora da Conceição e da Boa-Morte, na imagem à direita, faz o contraponto entre a parte popular da Rua do Rosário e o aspecto de Centro Executivo que, após o cruzamento com a Avenida Rio Branco, ela emana.
O mosaico de pastilhas do mosaicista Paulo Werneck e a nova estação de bicicletas da Bike Rio.
Uma apreciação significativa quanto à paisagem do Centro numa manhã de sábado nos mostra que, mesmo não sendo um dia útil da semana, há uma concentração expressiva de trabalhadores por lá, só que com outro perfil: os do ramo da construção. É muito comum avistar homens suspensos por toda uma parafernália de fios, distantes à beça da superfície, limpando as vidraças dos espigões com os devidos instrumentos de trabalho. Ou então gente vindo de lá pra cá com carrinhos de mão cheios de entulho e garotos que se equilibram no último degrau daquelas escadas de madeira encostadas sobre alguma fachada. Pá, balde, cimento e martelo os acompanham. Esse é o momento de descanso dos executivos, que deixam os finais de semana para os operários labutarem no aprimoramento estético de seus escritórios e pequenos negócios.
“[…] há uma concentração expressiva de trabalhadores por lá, só que com outro perfil: os do ramo da construção. É muito comum avistar homens suspensos por toda uma parafernália de fios, distantes à beça da superfície, limpando as vidraças dos espigões com os devidos instrumentos de trabalho.”
No cruzamento com a Rua da Quitanda, a imponência retrofitada da Galeria Sul América – amplamente refrigerada, aviso, passa só na porta para você sentir o frescor de montanha – é vizinha do jovem prédio da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), ponto de encontro e de saída de muitos estudantes que transitam pela Rua do Rosário. Ambos os prédios – e seus respectivos serviços – visam um público “diferenciado” (linguagem administrês e midiática, é bom ressaltar) o que transforma a simplicidade das casas com azulejos lusitanos neste trecho num sem-fim de filiais de cafés e restaurantes mais sofisticados. É o início também do Centro mais turístico, aquele formado pelo corredor cultural da Rua Primeiro de Março. Ou seja, a Rua do Rosário, no final das contas, possui três identidades: uma mais popular, uma executiva (no seu trecho intermediário) e uma mais turística.
A árdua tarefa dos trabalhadores que se penduram em fios para limpar as vidraças dos edifícios. Na imagem seguinte, a luxuosa Galeria Sul América, na esquina com a Rua da Quitanda.
Azulejos predominam nas fachadas da Rua do Rosário, assim como exemplos do art nouveau, ao fundo, representado pelo CCJE.
O trecho turístico, no entanto, não significa que tudo ali há de ser preservado. Na teoria, sim, não é mesmo? Mas não é o que se vê por agora. Justo na esquina da Rua Primeiro de Março, tapumes azuis repletos de arames circulares farpados protegem um terreno cujo imóvel centenário ainda parece estar em processo de demolição. Não cabe a mim investigar o caso, apesar de eu lamentar que o nosso patrimônio seja tão vulnerável assim, especialmente em virtude da sua precarização física. Contudo, confrontando essa transformação selvagem a qual nosso espaço urbano às vezes é subjugado, permanece, suntuoso, o Centro Cultural da Justiça Eleitoral (CCJE) na outra esquina. Ele parece ser uma mistura de estilos com predominância do art nouveau e todo rico em detalhes e obras de arte. Fiz uma análise minuciosa de cada elemento da sua fachada, tendo encontrado, veja só, um indício de “fabricação” talhado na portaria: “S. Lino & Loures Fabricantes – Rua da Saúde”.
Mais adiante, outro legado do Rio Antigo surge diante do pedestre: um bueiro, quase na esquina da Rua Visconde de Itaboraí, com os dizeres “Para-Raios ‘Universal’ Octavio Valobra & Cia – Rio de Janeiro”. Ele fica bem em frente ao Prédio dos Correios e Telégrafos, de 1877. É nesta área onde a vocação turística se afirma pra valer. Galerias de arte convivem com obras de arte pública em meio a luminárias avoengas. Além disto, o corredor da Rua do Rosário estreita-se ainda mais ao receber mesas com toalhas quadriculadas coloridas dos diversos restaurantezinhos que ocupam os sobrados dali, como a Brasserie Rosário, muito similar a um bistrô francês.
Obras de arte a céu aberto na esquina com a Rua Visconde de Itaboraí e um bueiro retrô próximo ao prédio dos Correios.
Detalhe da entrada de uma das galerias de arte no trecho final da Rua do Rosário, que também concentra diversas mesinhas ao ar livre como as da Brasserie Rosário.
Era por entre essas mesinhas, aliás, que diversos aprendizes de fotógrafos se esbarravam com suas câmeras potentes e lentes requintadas. O charme do local atrai, semanalmente, diferentes grupos de fotógrafos e de gente interessada em história acompanhada por algum professor. É curioso observar como nós, cariocas, temos essa veia bairrista, que, se por um lado às vezes é vista como algo pejorativo, por outro, está sempre nos estimulando a conhecer e reconhecer cada vez mais o nosso espaço coletivo e os aparatos que o circunda. A Rua do Rosário é um célebre arquétipo para este tipo de exercício cultural. Segue a dica, pouco inovadora, é bem verdade, mas de uma honestidade ímpar.
Quer ver mais fotos da Rua do Rosário?
Acesse e curta a página do As Ruas do Rio no Facebook!
Para contato direto | asruasdorio.contato@gmail.com