Como se não bastasse a pandemia em si e tudo o que ela significa e tem nos provocado, quem gosta da gastronomia e da boemia populares do Rio de Janeiro tem sofrido com um martírio a mais: ver grandes nomes da noite carioca fechando suas portas definitivamente. Garçons perdendo emprego, chefs no olho da rua, empresários desolados. Padaria virando farmácia, casa de show virando depósito, restaurante virando loja de colchão. Nesse cenário, quando um bar vira… outro bar, não se pode considerar que foi uma desgraça. É o caso do querido Hipódromo, o bar icônico do Baixo Gávea. Ao vê-lo fechado de uma hora para outra, muita gente chorou, alguns revoltaram-se. Mas a transformação do velho Hipódromo no jovem Brewteco, que já está em andamento e deve concretizar-se com uma reabertura de gala em dezembro, a meu ver não foi um fim, mas um recomeço. E a garantia – a única possível, na atual circunstância – de que a história linda do Hipódromo estrela do Baixo Gávea, ponto de encontro de três gerações de cariocas, jamais se perderá.
Assim dizem seus quatro novos donos, os jovens empresários que comandam o Brewteco e suas três lojas no Leblon, na Tijuca e na Barra. Todos já foram clientes do Hipódromo. Como eu e como você, caro leitor da Veja Rio a quem me apresento hoje pela primeira vez neste blog estreante, eles também têm suas boas lembranças do bar. E prometem preservá-las.
Segundo eles mesmos, o fim do Hipódromo também foi um choque. “Ficamos surpresos quando nos procuraram”, diz Rafael Farrá, um dos sócios do Brewteco. Ocorre que a família que comandava o antigo bar estava cansada. Não queria mais nada com o negócio, nem mesmo tinha interesse em repassar a marca. Estavam há meses em busca de um comprador para o imóvel, e ponto final. Só exigiam uma coisa: que a loja de quase 200 metros quadrados na esquina da Praça Santos Dumont com a Rua dos Oitis se transformasse num bar, ou restaurante. Dispensaram propostas milionárias de empreendimentos imobiliários, e esperaram. Até que o bar surgiu. O negócio com o Brewteco e seus investidores foi fechado em semanas.
Ao dizer que vão preservar a memória do Hipódromo, os novos donos garantem que vão fazer muito mais do que manter a churrasqueira, como já foi ventilado por aí. A manutenção de dois ou três nomes do quadro dos míticos garçons da velha casa está de fato em andamento, e com as tratativas bem adiantadas. Os nomes ainda estão em sigilo, e só serão revelados quando todos os trâmites das novas contratações forem concluídos.
No salão, um espaço reservado à memorabília do velho Hipódromo está sendo desenhado. O antigo Hipódromo Up, o segundo andar da casa que por anos abrigou shows que marcaram época e estava há anos fechado, sob o domínio do mofo e da escuridão, será inteiramente reformado para virar a segunda filial do Drinque, uma casa de coquetéis pertencente ao grupo, que acaba de ser inaugurada ao lado do Brewteco da Barra. No projeto arquitetônico, está prevista a transformação de parte do andar num rooftop, com vista para a praça Santos Dumont, o Jóquei e a Lagoa.
Mas é no cardápio de comes e bebes que residem as melhores notícias. Pelo menos para este velho glutão, como eu: além de uma parede com 34 torneiras de cerveja artesanal (marca registrada do Brewteco), a futura casa vai contar com uma carta de cachaças 100% cariocas, e drinques feitos à base da marvada. A picanha que abrilhantou o almoço de milhares de famílias na varanda do Hipódromo por décadas vai continuar, mas a ela juntar-se-á a rabada que já faz sucesso nas filiais do Brewteco. E, last but not least: a única, a incomparável, a pizza de “Catupiry legítimo” do Hipódromo, que acompanhou a vida de muita gente ao longo de décadas de boemia notívaga (entre eles este que vos escreve) também vai continuar no cardápio!
Confesso que, quando ouvi essa notícia da boca do Farrá, meu corpo estremeceu, mas logo relaxou. Que alívio. Não conseguia me ver sem a pizza de Catupiry legítimo do Hipódromo. Assim como não consigo me ver sem a companhia do Lacerda, um dos poucos garçons que tenho coragem de chamar publicamente de amigo sem medo de parecer cabotino, a quem conheço há 35 anos. Ou o Boi, que como garçom do Hipódromo já estrelou mais comerciais que muito ator da Globo. Ou o Sassá, com sua simpática discrição. Ou ainda o Oliveira, um dos garçons mais competentes que já vi trabalhar. Espero, sinceramente, que algum deles (ou todos, quem sabe?) possa realmente permanecer no novo Brewteco da Gávea, preservando ainda mais a memória do Hipódromo. Eles, mais do que ninguém, são símbolos de um Rio que resiste. Que muda sim, porque tudo muda sempre, mas que não perde o respeito pela sua própria história. Apesar da Covid, apesar da crise econômica, apesar dos demandos de quem insiste em achar que pode fazer com que os cariocas esqueçam a sua própria identidade.
PS: Esse blog que hoje se inicia é a continuidade de um trabalho que começou no século passado, na extinta Revista 2K, em 1999. E que continuou por 17 anos, entre 2003 e 2020, no caderno Rio Show do Jornal O Globo. E agora segue aqui no site da Veja Rio, a quem agradeço de montão pela generosa acolhida. A ideia é seguir pesquisando, fotografando e resenhando novos e antigos bares do Rio, do Brasil e do mundo, sempre valorizando a cultura universal do botequim, da boemia, da gastronomia popular e da comprovação de que ser feliz não custa caro. O teor mais “noticioso” do texto acima será fato raro neste espaço.