Carta para o poeta e amigo Fernando Fiúza
A atriz e diretora de teatro Bel Kutner dedica uma carta a seu amigo e fala sobre as mudanças dos últimos 365 dias
Rio de janeiro,24 de Agosto de 2020.
Mon Cher Fefinho!
Finalmente tomo coragem de te escrever. Você, meu maior e mais antigo correspondente. Exatamente por isso fiquei procrastinando, sabia que mexer nas nossas cartas iria me jogar num turbilhão de emoções e fui adiando. Mas o destino me empurrou até aqui.
Que ano terrível. Quantas perdas. Amanhã faz exatamente um ano que Fernanda Young nos deixou, ela, que é a culpada de nossa amizade. Não consigo realizar. Perdi tios amadíssimos também. E nem estar com os familiares e amigos, abraçar, lembrar dos momentos especiais, nada. Um luto sem fim.
Mas voltemos à minha sina! Depois de várias semanas de sol, praias lotadas como se não houvesse pandemia, o céu resolveu desabar. E numa infiltração monstro minha estante de livros foi lavada. Perdi toda minha coleção do Machado de Assis! Toda! E algumas outras belezas, mas que nem contam perto do que foi perder todos os livros de capa dura, obras completas do maior escritor negro brasileiro e do mundo, do Bruxo do Cosme Velho. Você imagine o desgosto. Nem chorar pude por ser uma futilidade chorar por papel diante de milhares de mortes. E no meio desta inundação tive que arrumar a papelada e parei nas cartas. Muitas cartas. Suas, de Fernanda, de Sebá, de papai, mamãe, irmãs, namorados…
Nas suas, muita poesia, muita cumplicidade, algumas fofocas e vários momentos em que mesmo distantes estávamos unidos por nossa amizade que já sabíamos eterna.
Até o causo das formigas de coco, que andaram comendo seus livros achei! E de quando fiz Capitu no teatro da Academia Brasileira de Letras, adaptação de Dom Casmurro, e você comemorou me falando da grandeza dessa personagem e de como a ambiguidade dela é uma das maiores sacadas de Machado, ambiguidade que se tornou a grande qualidade literária do séc. XX. Foi tão importante ouvir essas coisas de você, que tinha feito no mestrado exatamente um trabalho sobre “A presença da literatura greco-latina em Dom Casmurro”. Capitu, Capitolina, Capitólio. Mas à época não contei uma coisa que me deixou curiosa: No prédio da Academia Brasileira de Letras vi um pequeno quadro que de seria uma “academia culinária” ou algo assim. Coisas do Machado, que adorava um doce. Principalmente uma boa cocada. Fui atrás disso no onipresente e onisciente google, mas não achei. Achei uma crônica muito linda, onde comenta o lançamento de um livro de confeitaria:
“É fora de dúvida, que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compendiadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas. Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come-se. Comê-la é defini-la. No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. … “
É. Parece que pouco mudou. E enquanto escrevo a goteira pinga, pinga. “O Brasil é um país úmido e hereditário. As coisas se estragam com a umidade e passam como estão para a geração seguinte, aí se estragam mais.” Como você bem citou Tom Jobim numa das cartas lindas e divertidas. Vou reler todas.
Te devo um almoço descente, estilo slow food, e não aquela bagaceira mexicana em que levei vocês. Oxalá venha a vacina ainda no verão. O primeiro que tomar pega um avião!