Ouça com atenção e pare, assim como eu, de ignorar a audiodescrição
Entrevistamos a audiodescritora Nara Monteiro sobre o ofício que traduz as imagens em palavras para pessoas com deficiência visual ou baixa visão
Há algumas semanas um prospect me pediu uma proposta de trabalho de conteúdo digital que deveria conter no orçamento o trabalho de audiodescrição. Veja bem, eu tenho uma agência há quase cinco anos e nunca havia orçado este serviço com parceiros. Postei nas minhas redes sociais pedidos de indicação e vários nomes chegaram entre eles o da atriz e audiodescritora Nara Monteiro. O bate-papo com ela foi tão bom que abriu os meus olhos para a questão sobre como nós, produtores de conteúdo, simplesmente ignoramos esse segmento tão importante e não acessibilizamos a maior parte do que produzimos. Senti uma tremenda vergonha por até hoje não ter incluído este serviço nas minhas propostas e com essa entrevista espero tocar também os meus leitores do universo digital para que possamos, cada vez mais, tornar o conteúdo que produzimos na internet acessível a todos. Confiram este bate-papo esclarecedor que tive com a Nara Monteiro, carioca, 54 anos, audiodescritora de notório saber, que atua há 13 anos no segmento. Vamos lá:
Me conta um pouco da sua historia e como começou a trabalhar com o universo da audiodescrição?
Eu sou jornalista de formação, fiz estágio, depois fiz CAL, onde me formei como atriz. Mas eu comecei a trabalhar com audiodescrição da seguinte forma: uma produtora que eu conhecia na época, a Lara Pozzobon, trouxe para o Brasil um festival de cinema alemão chamado “Assim vivemos” que continha todas as acessibilidades. Era um festival de cinema só sobre as pessoas com deficiência mas, quando ela trouxe o evento para o Brasil percebeu que ainda não havia áudio-descritor no Rio de Janeiro. Ela então convidou a irmã, Graciela Pozzobon, para fazer a primeira audiodescrição que se tem notícia aqui no Rio, que aconteceu lá no CCBB, em 2003, e pouco tempo depois, em 2007, precisou aumentar a equipe dela para trabalhar em um espetáculo da Escola de Gente, da Claudia Werneck, com quem aprendi tudo sobre o pensamento inclusivo. Fui chamada e treinada pela Lara e Graciela, essas duas irmãs, que me ensinaram tudo que elas sabiam sobre o assunto. Desde 2007 trabalho para a ONG Escola de Gente, que é a única que promove total acessibilidade em todas as peças já montadas por eles. Em todas as sessões têm Braille, material com letra ampliada, material digital e em tinta, audiodescrição, visita tátil no cenário, intérprete de Libras e legendas, lugares reservados para pessoas com mobilidade reduzida e as peças só acontecem em locais totalmente acessíveis.
Se você tivesse que fazer uma linha do tempo pensando no que evoluiu desse cenário da audiodescrição de 2007 para hoje no Brasil, como seria?
Muita coisa evoluiu. Pra começar, quando eu comecei, não havia nenhum curso que você pudesse fazer uma formação, hoje já existem vários cursos, já existe uma Pós-Graduação no assunto em Minas Gerais, então muita coisa evoluiu, as técnicas evoluíram. Além de não haver audiodescritores na época, hoje temos audiodescritores espalhados pelo Brasil. É lógico que o Brasil é um país muito peculiar porque temos uma área muito grande, então há cidades no interior onde não tem, mas nas grandes cidades sempre tem bons profissionais na área. Outro aspecto importante: quando a audiodescrição começou ela não tinha uma das figuras mais importantes no processo que é a própria pessoa com deficiência visual ou baixa visão, hoje temos um trabalho em que essa pessoa é o centro da estratégia, o agente desse trabalho. Hoje em dia não se faz um roteiro sem passar por um consultor de audiodescrição que é uma pessoa com deficiência visual que estudou a técnica e vai avaliar o seu trabalho. E eu acho que isso é muito importante. Hoje em dia as pessoas com deficiência visual estão neste lugar da consultoria onde perdura o lema “nada sobre nós, sem nós”.
O que o lema quer dizer na prática?
Lugar de fala. Você não vai dizer para uma pessoa com deficiência o que é melhor para ela. Quando eu trabalhava com a Graciela e o Marco Antônio Queiroz (que já faleceu e era autor do blog Bengala Legal) eu fazia roteiros de filmes e passei por algumas situações que ilustraram bem isso. Por exemplo, uma vez eu estava descrevendo uma cena em que um personagem mergulhava em uma piscina vazia e na hora que falei isso achei super tranquilo. Aí o “Mac” – como eu chamava o Marco Antônio – deu um berro e perguntou: “Morreu?”. E aí eu percebi e respondi: “Não, Mac, era uma piscina sem ninguém”. É esse tipo de coisa que o consultor não deixa passar.
Muito interessante, por mais que tenhamos empatia, tem coisas que só um portador de deficiência visual pode perceber, né?
Isso. Vou até aproveitar para te falar: ninguém porta. Esqueça este termo. As pessoas falavam assim: pessoas com necessidades especiais e portadores. Quando você porta alguma coisa você está supondo que pode deixar aquilo de lado. Por exemplo, estou portando uma caneta e depois posso larga-la. A deficiência não é algo que se possa deixar. A necessidade especial também não porque se a gente for pensar, todos os seres humanos têm as suas necessidades especiais, então isso também não serve para você atribuir ao outro. O que vem primeiro? A pessoa ou a cegueira? A pessoa. Então sobre pessoas com deficiência você vai sempre falar: pessoas com deficiência, porque a pessoa vem sempre antes da deficiência, porque a deficiência não define a pessoa, ela é um indivíduo, uma pessoa antes de qualquer coisa.
Ótima explicação, obrigada por me ensinar. Quando falamos sobre audiodescrição estamos falando exclusivamente de um serviço para pessoas com deficiência visual ou baixa visão?
Já descobrimos que a audiodescrição tem uma abrangência muito maior do que somente as pessoas com deficiência visual. Uma vez eu fui fazer um espetáculo todo sem fala, ou seja, em uma apresentação muda em que quem falava o tempo todo era eu. Uma professora chegou com uma turma em que os alunos pegaram o fone para me ouvir, mas tinham dois alunos que tinham déficit de atenção e hiperatividade. Narrei tudo que estava acontecendo, todas as cenas. A professora colocou o fone das crianças com déficit de atenção, não só nas com deficiência visual, e no final ela veio encantada me dizer que ela nunca tinha conseguido ver aquelas crianças tão atentas e que ficou arrependida de não ter pego o fone para si mesma. Ela me perguntou: “O que é que você falava? Porque toda hora que eu via que as crianças iam partir para outra ação você falava algo que elas voltavam para a cena”. Já tivemos essa mesma experiência com pessoas com paralisia cerebral e com Síndrome de Down. Nosso amigo em comum, o Lula Branco Martins* foi assistir alguns espetáculos em que eu estava trabalhando e me dizia sempre “eu prefiro ver com você do que sem você”.
Onde a audiodescrição é requerida atualmente?
Em cursos onde há alunos com essa necessidade, mas sobretudo ela é uma lei não cumprida, todas as emissoras de TV já tinham que estar com audiodescrição em toda a grade, nenhuma peça de teatro poderia acontecer sem ter audiodescrição, na verdade estamos em uma situação em que o Brasil está sendo Brasil da pior maneira que ele pode ser. Justamente com o não cumprimento daquilo tudo que foi legislado. Qualquer peça, por exemplo, com incentivo via Lei Rouanet é obrigada a colocar acessibilidade, mas há sempre um tipo de drible e um “jogo do empurra” para não cumpri-la. O que pra mim é o pior é que as pessoas montam seus orçamentos sem a acessibilidade e depois reclamam dos preços quando são cobradas. Ninguém deixa de ter cenário, deixa de ter luz, mas deixa de ter acessibilidade na hora de estruturar um espetáculo. É sempre aquela pergunta: você está fazendo essa peça pra quem? Você está dizendo para essas pessoas: não venha, não te considero como um indivíduo, como um cidadão que deva consumir cultura, por favor, não venha.
A evolução da internet dos últimos anos contribuiu de alguma maneira para o universo da audiodescrição?
A tecnologia assistida evoluiu, você tem ledores hoje que são muito melhores do que há dez anos. Então hoje você tem celulares que são capazes de descrever algumas figuras, equipamentos que têm acessibilidade, e isso é uma coisa muito nova, quando eu comecei os ledores só liam texto. Por exemplo, os emojis hoje são “lidos” por audiodescrição. Mas é muito difícil acessibilizar, por exemplo, o que estamos fazendo agora (a entrevista foi via Google Meet), porque o Youtube não tem bandas sonoras, o Zoom lançou uma banda sonora, mas que serve para fazer uma tradução simultânea que não se aplica a audiodescrição porque não permite duas saídas de som ao mesmo tempo. Para a audiodescrição está sendo um verdadeiro inferno este momento.
Mas essa solução de duas saídas sonoras me parece relativamente simples de implementar, não? O que seria então, falta de interesse do mercado?
Completamente simples, é uma questão de querer, de voltarem a atenção pra isso. O Instagram, por exemplo, não é acessível. A mecânica de postar uma foto é difícil para as pessoas em geral, imagina para pessoas com deficiência. E isso é com tudo. Não é difícil acessibilizar, é uma questão de interesse. Tudo tinha que ser bilíngue, tínhamos que aprender Libras na escola, tinha que ter audiodescrição em tudo. Onde deveria ser obrigatório? Em todos os lugares onde há pessoas.
*Lula Branco Martins foi um jornalista carioca maravilhoso que morreu em março de 2017, vítima de um AVC. Tive o privilégio de trabalhar com ele quando fui repórter da Veja Rio de 2011 a 2014 e a Nara, por coincidência que descobrimos no meio da entrevista, também era amiga dele. Para quem quiser saber mais sobre o Lula é só ler o que o editor Pedro Tinoco escreveu sobre ele no dia do seu falecimento neste link: https://gutenberg.vejario.abril.com.br/cidade/morre-o-jornalista-lula-branco-martins/.
Carla Knoplech é jornalista, fundadora da agência Forrest, de conteúdo e influência digital, consultora e professora