Cristiana Beltrão

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Comida shojin

As tendências gastronômicas de hoje cabem nos ensinamentos de uma cozinha do século VI

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
17 set 2022, 17h46
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  • Sabia que haveria uma sequência fixa de pratos, que o menu seria vegano e que pretendia celebrar os ingredientes do Outono, mas estava num restaurante de cozinha shojin e não tinha a menor ideia do que isso significava. Era setembro de 2021 e eu tinha de jantar.

    Quando comento sobre minha insônia, companheira desde a infância, nove entre 10 amigos (em geral, aqueles que não me conhecem tão bem) sugerem prontamente a meditação. Acontece que basta ouvir a palavra “meditar” que meu coração dispara, me ponho a sacudir as pernas e percebo um conjunto de sintomas que claramente refletem um pico de ansiedade.

    É claro que a única meditação possível para mim deveria vir acompanhada de comida.

    Numa tradução grosseira, shojin é a junção de dois ideogramas que resultam em algo como “aprimorar o espírito”. E shojin ryori (preparar alimentos buscando essa elevação) é a cozinha tradicional dos monges zen budistas do Japão desde o século VI que, assim como acontece na cerimônia do chá, pretende alinhar cabeça, corpo e mente através de um determinado ritual. 

    O conceito não é difícil de apreender. Quantos de nós, naqueles dias de confinamento pandêmico, sovamos nossa tranquilidade preparando comida? 

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    Tenho de ficar trancada em casa por mais uma semana? Okay, vou fazer um pesto no pilão. Dois dentes de alho, soc soc, será que minha filha já estudou para a prova?, soc soc, vou juntar pignoli, soc soc, a reunião é a que horas?, soc soc, agora é ralar mais pecorino, soc soc soc, umas seis folhinhas de manjericão, soc soc soc soc , outras seis, soc soc soc soc soc, e mais um tanto, soc soc soc soc soc soc… 

    Dependendo do prato, a atenção e repetição das tarefas exigia tanto esforço e foco que, sem que eu me desse conta, a cabeça ia se esvaziando de preocupações e, bem antes do último “soc”, eu já estava zen. Enfim, uma filosofia oposta à de um Thermomix. 

    Depois do tal jantar, pesquisei bastante sobre o assunto e, quanto mais estudava, mais me dava conta de que a cozinha shojin já estava careca (sem trocadilho com os monges zen budistas) de pregar princípios que vivem na boca dos chefs contemporâneos: 

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    SAZONALIDADE e LOCALISMO. A ideia é homenagear a colheita e reconhecer a estação e o ambiente através da comida, selecionando e aproveitando todos os ingredientes que aquele ciclo oferece até que o cozinheiro se sinta parte dele. 

    DESPERDÍCIO ZERO. Todas as cascas, folhas, talos do alimento são aproveitados. 

    “MINDFULNESS”. É atenção total ao momento presente como forma de desacelerar e aprender sobre si mesmo. Usar integralmente os produtos da estação envolve separar, descascar, picar, socar, fermentar, marinar, conservar e aproveitar todos os ingredientes através de métodos tão precisos que tira as preocupações da cabeça e põe foco apenas na dificuldade da coisa. 

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    VEGANISMO. O zen budismo prega a não-violência. Além disso, o consumo de carne animal embaçaria o espírito e atrapalharia a meditação. 

    “GRATIDÃO”. Essa cozinha da devoção ao preparo torna o comensal grato a todo o trabalho envolvido, o que equilibra as expectativas do ego e torna cada mordida muito mais preciosa.

    Pois é….  Sinto dizer que as “tendências” de hoje já eram assunto no século VI. Modernos mesmo eram os antigos monges zen budistas.

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    No meu jantar, uma folha de magnólia seca recheada de uma deliciosa pasta de missô de nozes, cogumelos e figos grelhados levou dias inteiros de preparação! Uma meia lua feita de milho, caqui, castanhas, ginko com uma massinha em forma de folha de maple levou outros tantos. Foram etapas e mais etapas cheias de trabalho e poesia, sem nenhum liquidificador envolvido.

    O curioso é que nem o sucesso ou a estrela Michelin conquistados pela casa impediram que o fim do Kajitsu fosse anunciado mais de um ano antes, pelos sócios. O fechamento acontecerá amanhã, em 18 de setembro de 2022. O motivo? Um outro ponto chave da filosofia budista: a “impermanência das coisas”. 

    E é isso aí. Tudo passa e está tudo certo.

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    O Kajitsu fechou suas portas, mas não me esqueci daquela refeição ou da filosofia que aprendi, graças a ele.

    Que venha a nossa Primavera e seus ensinamentos.

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