Num banquete oferecido pelo Rei de Nápoles, Dante era o convidado de honra. Chegou vestindo roupas simples, como era costume entre os poetas, e foi colocado num cantinho isolado, bem longe do Rei. Comeu porque lhe deram comida, bebeu porque lhe deram vinho, mas saiu cedo e em silêncio, já que ninguém lhe deu bola.
Em dado momento, o Rei se lembra do convidado importante e pergunta por Dante, recebendo a notícia de sua partida com imensa vergonha. Ordena, então, que um sujeito saia em disparada para tentar alcançá-lo, com uma mensagem de desculpas e um convite para voltar.
Apesar de aborrecido, volta agora vestindo “belíssimas coisas”, apresenta-se ao Rei com todo o salamaleque e, naturalmente, ganha o assento mais importante na geografia simbólica do banquete. A cena que se segue é descrita por um dos presentes: “em vez de levá-los à boca, Dante jogava os alimentos sobre as vestes, atirando-os ora de um lado, ora de outro. A carne cozida pôs no braço; nos ombros pendurou aves inteiras”.
Quando o rei pergunta como alguém tão sábio podia ser capaz de tamanha grosseria, escuta: “Sacra Majestade, reconheço que a grande honra que agora concedeste, concedeste às roupas; e assim eu quis que as roupas fruíssem dos alimentos servidos”.
A estória contada na novela do lucano Giovanni Sercambi, é uma de várias acerca do espírito sarcástico de Dante, presente no livro “Histórias da Mesa”, de Massimo Montanari. Fabulosa ou não, fala bem dos códigos silenciosos que se desenham em torno de uma refeição.
A mesa retangular medieval, por exemplo, tinha um objetivo bem claro: determinar qual era o lugar dos poderosos e isolar lá na pontinha aqueles que não interessavam tanto. Não à toa, as estórias sobre o lendário rei Arthur louvavam a távola redonda, uma mesa sem cabeceira e, portanto, bem mais democrática.
Em todos os níveis sociais, dividir uma mesa é o primeiro sinal de pertencimento. Na família, nos almoços de negócios, nas associações ou igrejas, o grupo se reconhece no refeitório e é ali que reafirma a sua identidade coletiva.
Os manuais com os primeiros modos à mesa surgiram nos séculos XII e XIII e eram instrumentos dedicados a dizer quem estava dentro ou fora, quem participava ou estava excluído dos rituais de convívio.
Além dos manuais de ontem e de hoje, há silenciosas nuances hierárquicas: quem se senta ao lado de quem, quem ganha o melhor pedaço ou, por exemplo, na côrte renascentista, quem poderia ascender à nobreza caso soubesse tirar o melhor dos alimentos com facas, faquinhas ou facões, a serviço do rei: o escudeiro trinchante.
Num livro maravilhoso que ganhei de amigos, “À mesa dos diplomatas. A história da França contada através de suas grandes refeições (1520 – 2015)”, ficam claros os pequenos gestos, de aproximação ou força, dados pelos governantes.
No jantar oferecido por De Gaulle a Nikita Khrushchev, em março de 1960, o serviço foi à francesa, mas com etapas à russa, como gesto de conciliação. Já o Don Pérignon de 1949 escolhido para o brinde, apesar de jovem demais para os padrões do Elysée, era propositalmente de uma safra pós-guerra, símbolo da reconstrução nacional. Um recado importante de engolir no meio da guerra fria.
Sejam tempos de guerra ou de paz, comida e convívio estão intimamente ligados. Pensava na beleza etimológica da palavra “convívio” (cum vivere), que identifica o comer junto com o viver junto, quando lembrei do jantar.
Onde estariam meus filhos?
Um frango escarafunchado sobre o mármore da cozinha, as gavetas de talheres abertas e as portas dos quartos fechadas eram indícios de que a poesia do “comer junto” havia acabado.
Enquanto em 2020 os filhos abraçaram o inevitável e passaram a apreciar as refeições com os pais, 2021 anda com gosto de “basta!”.
Pela casa, cada um ocupa um quadrante enquanto estuda, com a armadura conveniente dos fones de ouvido. Almoçamos juntos? Não exatamente. Servem e engolem a comida com os olhos grudados no telefone ou computador.
Suspiro e aceito. Ninguém quer comprar briga com a prole isolada há um ano e seus nervos à flor da pele.
Conviver em tempos de pandemia não é fácil. Afinal, há gente demais. A mesa está cheia de colegas, parentes, amigos, amores e os humores azedos que a saudade traz.