Começou assim, de um jeito tímido, como torneira desregulada: ping… ping… ping… Pus o dedinho para tampar, tentei conter. E então vem a explosão, com força! Um esguicho entra pelo nariz e me engasga ao invadir a boca, um outro quase me cega os olhos, até eu decidir abandonar a barreira e deixar a água vazar para todo lado. Assim começou – e explodiu – a conversa com amigos num grupo comprido de whatsapp, quando um deles disse timidamente: É sério que SÓ EU não tenho uma relação poética com a comida?
Eu estava em modo fofo, falando das inúmeras publicações recentes sobre a redescoberta do prazer de cozinhar, da cozinha como válvula de escape, pilar da sanidade no isolamento, sobre comida afetiva de avós e blá blá blá, até que a rebelião começou.
Como assim, “só você?”, disse uma amiga. “Eu sou como Sísifo, rolando pia abaixo uma montanha de verduras e legumes e fazendo a dança do acasalamento com o desinfetante, mas sei que vou pegar esse vírus de qualquer jeito! “Higienização” de mãos!! O que aconteceu com “limpar”, “lavar”, que p…. de palavra imbecil é essa?? Não tem termo melhor pra vocês usarem, não???, confessou ter berrado para o caixa do supermercado.
Um amigo totalmente inábil e impaciente na cozinha, contou que seu primeiro contato com uma massa foi um encontro de fé, como o de Jesus e o paralítico em Cafarnaum. Pus a água na panela, joguei o macarrão lá dentro, esperei um milagre e gritei: “coze-te!”. Não funcionou… Aliás, continuou, que diabos é banho-maria? Meu fogão não marca temperatura, então como sei que é 180 graus? Onde eu grelho coisas? Isso é dentro do fogão?
Por que, meu Deus, fui comprar chuchu? Tem gosma!!!, revoltou-se outra amiga. Só queria, disse, requentar umas cebolas fritas que acompanhavam o quibe do delivery enquanto cozia o arroz. Apagou a boca errada do fogão e, quando voltou, encontrou um arroz cru e umas cebolas carbonizadas. Quem consegue operar duas bocas??!!, desabafa.
E meu suflê interior, fofo, murchou ao entender que metade do mundo anda assim.
E os protestos continuaram: “O pior são os tais ingredientes!”, disse outra amiga. Onde estão esses ingredientes das pessoas que compram de pequenos produtores, essas coisas frescas? Eu compro no supermercado um bando de genéricos e nem sei por onde começar! Não sei dizer se a abóbora está verde ou não, não sei apertar coisas, escolher carne, não aguento o peixe me olhando! Já chego em casa querendo cortar os pulsos e acabo parando no salaminho.
O capítulo das receitas também frustra outros tantos, como apontou a querida Carol Barbosa, em reportagem aqui na Veja, na semana passada.
Um amigo paulista que mal frita um ovo resolveu se animar na cozinha justo com uma compota de limão-cravo, amor da infância. Ralou todos os dedos junto com as frutas e quando sacou as cascas da panela fervente, se deparou com algo que parecia um escalpo alaranjado da careca de alguém. Perdeu o apetite, só de olhar, e jurou nunca mais cozinhar.
Só posso dizer que depois de tantos depoimentos impacientes de gente sem vocação, tempo ou vontade, ouvi as mais lindas declarações de amor aos restaurantes e a falta que a gente faz.
Amém!
A todos vocês, abandonados, o nosso muito obrigado.