Meus dias parecem ter oito horas e meia, quando muito, a despeito das mentiras que me conta o relógio.
Acabam assim, no susto, sem que eu tenha conseguido dar conta dos e-mails, planilhas, exercícios e até lazer. Não bastasse, ao fim do dia cotó, vem a batalha de incluir legumes e verduras diferentes na dieta dos filhos, em receitas que levarão a protestos na hora do jantar… claro.
Felizmente, por conveniência ou exaustão, há sempre o dia do prato “felicidade”. Aquele, que agrada a todos os membros, é feito com ingredientes simples e fáceis de achar e que enche a pança sem gerar disputas, birras ou discursos revoltados da plateia.
No Japão, esse prato tem nome e até dia marcado no calendário: é o karē, receita celebrada nacionalmente, hoje, dia 22 de janeiro.
Mas curry e karē não são a mesma coisa?
Não… não mesmo.
Se perguntarmos para qualquer indiano o que quer dizer “curry”, a maioria não saberá responder. Para eles, o termo não é genérico e cada família tem sua particular mistura de sementes, especiarias e temperos, socados. O que nós, brasileiros, convencionamos chamar de curry, é apenas uma das centenas de receitas existentes. A versão que adotamos, por acaso, tem como base predominante as sementes de mostarda e cúrcuma, daí sua cor amarelada.
Alguma versão de curry chegou ao Japão na metade do século 19 pelas mãos de comerciantes ingleses, e não vinda da Índia. A primeira receita publicada no Japão foi de 1872 e tinha o nome de “vitela ou ave servida com arroz”. Não era, de fato, um curry indiano, e sim, um ensopado de carne feito com uma versão ocidentalizada do molho, bem menos picante, ao gosto dos ingleses.
Na verdade, o karē se tornou um prato largamente aceito e comido ao menos uma vez por semana pela família tradicional japonesa graças à uma grande coincidência histórica.
Proibições religiosas budistas e xintoístas fizeram do Japão um país praticamente vegetariano por centenas de anos, o que levou a uma população bem mais baixa e mais magra que a média ocidental. No século XIX, 16% dos candidatos ao exército, por exemplo, não chegava a 1,25m de altura.
Impactado pela dieta europeia e com o objetivo de criar um exército mais forte, o Imperador Meiji decide, em 1872, comer carne publicamente pela primeira vez, permitindo aos súditos que seguissem seu exemplo. E o tímido consumo de carne em Tóquio cresceu 13 vezes, em 5 anos.
O país, fechado pelos 200 anos que antecederam a chegada daquele condimento, abria suas portas ao Mundo no mesmo momento em que deixava de ser uma nação vegetariana. Comer carne, portanto, era algo muito desafiador para a população.
Eis que chega o karē, perfeito para amenizar o cheiro forte da carne, com suas especiarias e um molho denso, que ainda podia ser misturado a vegetais para ser mais bem recebido. Além disso, convenhamos, a carne ensopada era mais macia e fácil de mastigar que a grelhada.
E hoje?
Alissa Ohara, do restaurante Azumi, no Rio de Janeiro, explica que a preparação básica leva batata, cenoura, cebola e alguma proteína, além do fundamental ‘RU’ – o tablete de especiarias prensado, batizado por conta do “roux” francês, que assim como o karē, é um molho espessante à base de farinha.
O karē clássico é receita associada à carne de porco, por ser mais barata que a de boi e percebida como mais saborosa do que a de frango. Para os antigos, portanto, é essa a expectativa quando são servidos.
Ao longo do tempo, inúmeras versões apareceram, mais ou menos picantes, com outras proteínas e temperos adicionais, para quem quisesse emprestar algum borogodó.
A melhor analogia, segundo Alissa, é a do estrogonofe. Feito de modo simples, pode ser bem gostoso, mas chega a ser fantástico, dependendo da dedicação do cozinheiro. Sua versão é bem incrementada e inspirada na da mãe: leva cebolas até que fiquem bem escuras, e ainda maçã, banana, leite de coco, tomate e iogurte, num cozimento que leva muitas horas. Salivei.
Essa e outras receitas de karē serão servidas em alguns restaurantes do Rio, em roteiro salivante descrito aqui por Carolina Barbosa, até o dia 28 de janeiro.
Celebremos, então, essa comida afetiva, que passa de geração e geração e é símbolo de família reunida em torno de uma só panela. Viva a “cozinha do abraço”, gesto do qual estamos tão carentes em tempos de pandemia.
Vou lá ganhar o meu.