Vinha duro, velho, seco e escoltado, quem sabe, por um tanto de manteiga rançosa. O caminho foi longo, desde aquele lugar esquecido até o pódio iluminado que o pão ocupa hoje, em bons restaurantes.
No Brasil, terra de mandioca e beiju, demorou a pegar. Afinal, era coisa de europeus e só apareceu com força em restaurantes no século 20 com o nome de “pão francês” (apesar da receita bem brasileira), tentando fazer as vezes de uma espécie de baguette.
Serviu, durante muito tempo, para abrandar a impaciência dos famintos como um “estofo” que convenientemente preenchia o estômago no lugar de ingredientes mais caros. Natural que aquele “cavalo dado” terminasse, muitas vezes, num produto de baixa qualidade.
Nos últimos 30 anos, à medida que restaurantes passaram a investir em ingredientes, maquinário e padeiros hábeis, parecia injusto que o pão não fosse cobrado, mas essa passagem psicológica não foi assim tão fácil.
No fim dos anos 90 e início dos anos 2000, me lembro claramente dos protestos constantes em torno da cobrança do couvert que, para acalmar os mais revoltados, adicionou alegorias e adereços para justificar o preço. Passava, então, a contar com antepastos, patês, pastinhas e, também, com pães em maior número de preparações, fossem focaccias, árabes, italianos ou ciabattas. A verdade é que, a partir daquele momento, a etapa tinha de valer a pena.
E hoje?
Desconfio que a pandemia tenha sido a maior responsável pela mudança na ordem das coisas. Literatura e tutoriais fartos fizeram surgir um consumidor mais crítico, uma infinidade de padeiros caseiros de olho na crosta estaladiça, nos furos da fermentação natural, escolha dos grãos ou densidade da massa. E ainda que houvesse gente sem vocação alguma para a cozinha, a comida foi um dos maiores prazeres do confinamento e o pão, sem dúvida, o mais quotidiano. Para os chefs, que se habituaram a priorizar outras receitas, desenvolver essa habilidade durante a pandemia virou alegre obsessão.
Além disso, nada como ter boas referências para elevar a média do mercado! A Slow Bakery, orgulho carioca que produz tantos pães que faço questão de ter em casa, foi (e é) uma das responsáveis pelo padrão que muitos restaurantes buscam ao desenvolver o produto em seus restaurantes. Palavra de vários cozinheiros.
A verdade é que o pão em restaurantes é infinitamente superior ao de 20 anos atrás e o imenso trabalho de retaguarda por trás do produto merecia ser reconhecido. O movimento que vejo hoje tira o pão do lugar banal de “distração”, daquele que acalma a fome enquanto os clientes investigam no cardápio o que querem comer, de fato, e dá a ele o papel de protagonista.
Dificilmente, num restaurante à la carte, perderá o seu lugar de abre-alas na cabeça do consumidor, mas nos menus degustação mundo afora foi caminhando para terceiro, quarto, quinto e, por vezes, último passo do cardápio fechado. Entre outras vantagens, o chef consegue mostrar suas habilidades com outros ingredientes mais leves em etapas anteriores, sem a saciedade que o pão emprestaria se viesse logo no início dos trabalhos.
Seja em Nova York, na Cidade do México ou em Lisboa, a moda agora é criar suspense antes do momento-pão. Aliás, adorei que o recém-inaugurado “Marlene,” (sim, Marlene vírgula) da chef Marlene Vieira, em Lisboa, além de trazer pão de centeio e trigo integral como quinta etapa de um menu de 7 passos, entrega ao cliente a receita da broa de milho branco da avó da chef junto com a conta. Um alento em tempo de câmbio nas alturas.
No Amana, em Niterói, uma ótima (e recente) descoberta, o chef Leonardo Guida prepara tudo de cabo a rabo na casa de apenas 12 lugares, inclusive o delicioso pão sourdough (feito com fermento natural) que tem 20% de grãos de centeio e é feito no forno a lenha. Vem no décimo curso, depois de nove “snacks” (pequenos pratos) feitos basicamente de proteínas leves. Cheguei até lá sem esforço e o pão veio num momento perfeito de abraço. Acompanhava a bottarga curada na casa, berinjelas defumadas com castanhas de caju e picles de abobrinha com algas.
No novo Lasai, os pães vêm no meio do caminho, depois de várias pequenas entradas, mas antes dos pratos principais. A etapa é caprichada, com pão de fermentação natural e brioche divinos, acompanhados de manteiga fermentada à moda antiga e do requeijão – paixão antiga do chef Rafa Costa e Silva – feitos na casa. E a alegria foi ainda maior quando reencontrei o antigo pão de queijo recheado com aligot, do endereço antigo do chef.
Não importa…
Seja com ou sem fermento, venha no início, no meio ou no fim, se falta pão, falta algo em mim.
Que venha!