Muito antes do novo coronavírus, o filho feio da crise começou a brotar nuns carros mal estacionados pela cidade. Havia sempre alguém sacudindo um pedaço de pano pelo ar chamando a atenção para o cartaz torto e caseiro de “vendo quentinha” sobre embalagens amontoadas num porta-malas, coisa nunca vista em bairros nobres do Rio.
Em 2016, o jornaleiro de minha esquina (estranhamente) passou a prestar o mesmo serviço, trocando revistas e que tais por refeições de oito ou dez reais. Chegamos ao fundo do poço, pensei. Só não sabia que estava míope e o poço tinha um alçapão com 3 subsolos.
Comentei em colunas passadas que a Revolução Francesa – movimento que aboliu os privilégios da monarquia e do clero – também deixou desempregados excelentes cozinheiros, confeiteiros, padeiros e assadores que trabalhavam nos palácios da nobreza. E foi essa gente qualificada e com técnica impecável que contribuiu, por acaso, para a proliferação dos restaurantes na Paris do fim do século 18, quando passou a servir intelectuais, a massa trabalhadora e homens de negócios de passagem, para sobreviver.
Mas o filme agora é diferente. Nesse Brasil miserável e desigual, enquanto os urubus rondam casas de nível que tentam se manter com um delivery que já não cobre nem 20% de suas despesas, a nova revolução não sai à francesa. Cospe no mercado, diariamente, centenas de funcionários altamente qualificados que se acotovelam para sobreviver na crise, vendendo refeições para home office e pequenos jantares encomendados, mirando no público com renda média em queda.
A conta do cliente é fácil: aquele vizinho, agora cozinheiro desempregado, entrega pratos prontos, sanduíches e cupcakes, com comida de garagem mais barata e de qualidade, já que não paga impostos. As “dark kitchen” ou cozinhas de produção sem restaurante físico, nome digno de arqui-inimigo de histórias em quadrinhos, se tornaram uma ameaça e não um novo modelo de negócios. No exterior, há várias legais, mas aqui infelizmente, a maioria não é. Além disso, o vizinho do 501 também faz uso de aplicativos de entrega sem metade dos custos de quem tem um negócio formal. A categoria reagiu e cobra agora que só casas auditadas pela vigilância sanitária possam fazer uso desse serviço.
Enquanto isso, os restaurantes são frequentemente fiscalizados, gastam mais com novos protocolos de saúde e ainda terão de ocupar só metade do salão na reabertura, por conta do distanciamento obrigatório.
Claro que haverá espaço para restaurantes como os conhecíamos, mas será briga de cachorro grande, além de um programa raro e caro. Para que a concorrência não seja desleal, é preciso que o Governo desonere quem empreende e gera emprego formal.
No Brasil do “cada um por si”, vale dedo no olho e soco no baixo ventre para sobreviver autonomamente. A continuar assim, não vai ter porta-malas que chegue.