Em tempos de pandemia, Momo não reinará. Com o cancelamento da folia em 2021, aproveitamos para recordar um outro momento em que muito se discutiu sobre a realização ou não do carnaval. Para muitos, cair na folia naquele fevereiro poderia ser comparado a um sacrilégio.
No ano de 1912, os jornais já anunciavam a mudança na atmosfera da cidade do Rio com a aproximação do carnaval quando, uma semana antes dos ranchos, bailes e desfiles efetivamente explodirem em cor nas ruas da então capital federal, uma fatalidade mergulhou o Rio e o país em um profundo dilema: deixar a folia correr solta ou cancelar a grande catarse coletiva em respeito ao luto pela morte de um herói?
O falecido era Joaquim Maria da Silva Paranhos Jr., o diplomata que, mesmo duas décadas após a Proclamação da República, ainda era conhecido pelo título nobiliárquico que lhe fora concedido na monarquia: Barão do Rio Branco.
A nobreza de Paranhos, contudo, não provinha de nenhuma linhagem antiga de sangue azul. O título lhe fora concedido só no último ano do período imperial, mas talvez tenha sobrevivido no imaginário popular como reconhecimento da grandeza de suas conquistas. Rio Branco foi o grande responsável pelo Brasil ter definido grande parte de suas fronteiras por meio de tratados e arbitragens e, portanto, sem derramamento de sangue, algo raro na história mundial — sobretudo para um país com as dimensões brasileiras e com tantos países fronteiriços quanto o nosso. O Brasil era republicano, mas o Barão era o Barão.
Paranhos tinha a alma carioca, era boêmio, frequentava as rodas e bailes da época, como os do Cassino Fluminense. Ao mesmo tempo, era extremamente estudioso desde os primeiros anos de sua formação, tendo acumulado um invejável conhecimento histórico e geográfico. Era sobretudo uma figura extremamente querida, desde a alta sociedade até as massas populares.
Segundo João Daniel Lima de Almeida, Professor de Política Externa Brasileira da PUC-Rio, o Barão do Rio Branco “gostava de passear entre os populares, de ver e de ser visto. Tinha amigos na imprensa que o tratavam com condescendência em geral nos anos anteriores a sua morte. É uma rara figura que entre os cartunistas quase sempre era pintado favoravelmente.”
O cortejo fúnebre saiu do Palácio Itamaraty, onde o corpo do Barão foi velado, e percorreu as ruas da cidade até o Cemitério do Caju. “Milhares de pessoas acorreram ao seu funeral. A tristeza foi grande e genuína, tanto que os foliões realmente não comemoraram em luto nos primeiros dias do carnaval suspenso”, afirma o professor João Daniel. “Mas depois o espírito momesco falou mais forte.”
Passados sete dias da morte do Barão, o povo foi às ruas mesmo assim. O carnaval oficial, que tinha seu ápice com os desfiles das grandes sociedades, seus carros alegóricos, fantasias e adereços, não passou pela Avenida Central, que, três dias antes, havia sido renomeada, passando a se chamar Avenida Rio Branco. O Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, havia transferido o calendário oficial para o início de abril.
Nenhum baile aconteceu nos clubes cariocas. Nenhum desfile oficial de grande porte. Mas nas ruas, a multidão fez a festa, em alguns cordões e ranchos que haviam decidido manter suas programações. Para muita gente, uma semana de luto era suficiente para o nosso herói nacional e o carnaval não seria necessariamente tão ofensivo à memória de Juca Paranhos. Muitos dos foliões inclusive homenagearam o Barão do Rio Branco em fantasias e adereços.
A Imprensa, que havia feito campanha ferrenha para o adiamento do carnaval, não perdoou o povo. Mesmo criticados por estar dançando sobre o túmulo do grande herói, os foliões seguiram adiante, espalhando alegria pelos bairros da cidade.
Na primeira semana de abril, a folia aconteceu de novo. E com ainda mais força, pois os desfiles e festas oficiais somaram-se à espontaneidade popular das ruas, e aos mesmos cordões e ranchos que já haviam saído em fevereiro. Foi um segundo carnaval para ninguém botar defeito. Nas ruas e nos salões, o carioca, irreverente, cantava a famosa marchinha:
“Com a morte do Barão
Tivemos dois carnavá
Ai que bom ai que gostoso
Se morresse o Marechá”
As críticas feitas pela Imprensa aos foliões daquele ano foram desmedidas e preconceituosas. O elitismo dos veículos de Imprensa da capital federal da “República Velha” referiam-se ao carnaval como algo de mau gosto, um costume bárbaro para o “zé povinho berrento”. Não se pode negar a importância do Barão para o nosso país, mas o povo que foi às ruas não fez nada de errado. Não estavam desrespeitando o luto nacional. Pular o carnaval era, até mesmo, uma homenagem a Juca Paranhos — um amante do carnaval e da nossa cultura.
O carnaval é nossa maior festa popular. É cultura e tradição, faz parte da nossa essência como povo. Mas este ano o carnaval pode esperar. A pergunta é: como ponderar o imponderável? O luto hoje é em respeito a quase 240.000 famílias que perderam seus entes queridos. Caso já tivéssemos sido imunizados em massa, nada nos impediria de fazer como os foliões de 1912 e brincar o carnaval, mesmo que cancelado, tornando-o bálsamo para nossas almas e homenageando a vida.
Hoje, no entanto, a situação é diferente. A pandemia persiste e faz cada vez mais vítimas diariamente. Mesmo com o início da vacinação, a imunização segue um ritmo muito lento. Aglomerações são uma ameaça à saúde pública, seja no carnaval ou em um dia comum. E não há que se festejar quando a celebração traz ainda mais risco a toda a sociedade. Neste ano, insistir no carnaval é homenagear a morte.
*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.
**Texto feito em parceria com o advogado e tradutor João Freire, redator da Equipe Rio Antigo.