Cara leitora e caro leitor, permitam-me uma breve apresentação. Sou Daniel Sampaio, carioca do Grajaú. Advogado por formação, mas memorialista por vocação. Segundo o dicionário Houaiss, memorialista é “aquele que se entrega demasiadamente a reminiscências e experiências passadas”.
Entregar-se demasiadamente pode ser positivo ou negativo. Depende do que fazemos com esse passado. Nos entregaremos a uma nostalgia paralisante e melancólica? Viveremos em constante lamento pelo tempo que passou e não volta mais? Ou daremos vida a tudo de ancestral que nos torna melhores no presente?
Um olhar memorialista sobre a vida é um olhar de cuidado pela reconstrução de histórias que se perderam no tempo. Mas histórias não são, necessariamente, a História.
A História oficial, sem um olhar crítico, pode ser meramente a história do vencedor. E novos vencedores propõem revisionismos estúpidos que querem nos forçar goela abaixo. Prefiro as lembranças das pessoas. A rememoração. Exaltar as histórias orais para reconstruir nossa noção sobre tudo que nos rodeia.
Como diz o escritor português Valter Hugo Mãe, “a construção de uma lembrança é algo que serve de companhia”.
Nunca estive solitário ao vasculhar as memórias da nossa cidade. Estive acompanhado de almas incríveis. Mesmo nos vilões que descobri. Nos mitos que desmistifiquei. Nenhum deles me foi fantasmagórico. Suas memórias vivem em mim.
Tenhamos nas memórias uma semente da grandeza do que construiremos. Uma lembrança, um pensamento, um valor, uma ideia tornam-se grandes feitos, valorosas jornadas, destemidos caminhos.
Há oito anos, comecei uma jornada de devoção ao passado como meio de compreensão da minha própria identidade. Muitos embarcaram comigo nessa ideia — e já somos mais de cem mil. No Instagram do @rioantigo, vivemos o sonho de uma cidade melhor, que vê no orgulho do passado e na compreensão das mudanças que sofremos, formas de viver melhor o presente e de imaginar o futuro.
Entre as muitas lições a serem aprendidas neste momento sui generis da humanidade, a necessidade de reconexão é das mais urgentes. Num mundo pós-pandemia, precisaremos nos reconectar. Com a cidade, com as pessoas, com as memórias de quem passou. Não há outra saída.
Segundo conceito da educadora social Cyntia Matos, com essas memórias afetivas, costuramos, tal qual uma colcha de retalhos, a nossa identidade comum, em meio a pluralidades. Quem se percebe pertencente a uma comunidade é quem está conectado aos seus valores, às suas tradições, à essência cultural que nos torna únicos em nossa diversidade.
Pertencer a algo maior para viver em serviço à comunidade. Não nos perderemos no abismo do individualismo quando nos sentirmos unidos a uma memória coletiva em permanente construção.
Nossas diferentes ancestralidades, que deveriam ser motivo de orgulho, geram violência e revelam preconceitos. As disparidades sociais agravam esse quadro, transformando diferenças em abismos. Pessoas que não se identificam entre si, mas com traços comuns tão especiais. Há algo de mágico que nos conecta. E é essa a minha busca, sempre otimista.
Nosso passado de sofrimento, de escravidão, de repressão, de injustiças são lições tremendas. Como seremos mais humanos e, cada vez, melhores?
Resgatemos as memórias afetivas da nossa gente! Sim, a nossa gente. Somos todos um povo. Cariocas de nascença ou não. Fluminenses ou não. Brasileiros. Cidadãos de um mundo cada vez mais complexo. E, nessa complexidade marcada pela fábula da irreversibilidade da globalização, nos pasteurizamos, nos homogeneizamos conforme a moda mais recente.
Onde estará a nossa beleza única? Quero me ver no espelho que essa colcha de retalhos constrói. Quero me ver nas experiências de gente de tudo quanto é tipo. Na minha individualidade, escolho ser plural.
Irei contar aqui memórias da nossa cidade, do nosso estado, que se confundem com a história do nosso país. Destacar o lado excepcional de pessoas comuns. Enxergar o que há de humano em personagens famosos.
Mergulhar nas histórias dos nossos bairros, entender o sentimento das esquinas, o valor afetivo de cada fachada. É o “corpo encantado das ruas” de Luiz Antonio Simas, o historiador que, brilhantemente, se lança a estudar a invenção da sociabilidade em meio ao que há de mais precário.
É chegada a hora da reconexão com a terra à qual pertencemos. Convido-os a lançar, junto comigo, um olhar memorialista sobre as nossas vidas e sobre a nossa cidade. Bem “demasiadamente” mesmo. Porque de contenção já estamos fartos!
*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado e memorialista. Apaixonado pela história do Rio de Janeiro e pelo resgate das memórias afetivas do nosso povo. Criador do perfil @rioantigo no Instagram, lidera o projeto RioAntigo.org, iniciativa de valorização do patrimônio cultural carioca nas redes.