Cacique de Ramos e de um Rio de misturas
Há dois anos sem desfilar, bloco mostra sua importância em livro, exposição e homenagem do Salgueiro
O desfile dos 60 anos seria em 2021, e foi cancelado por causa da pandemia. O Cacique de Ramos então planejou para este próximo carnaval a comemoração de sua efeméride, com direito a homenagem a Carlos Vergara, artista que tem parte de sua história trançada à da tribo foliã. A nova variante do vírus mais uma vez deixou o grupo longe da rua e da festa. Mas é bem fácil constatar que o Cacique estará sempre em movimento e em estado de celebração, mesmo quando não puder desfilar. E isso acontece porque o bloco é uma das mais poderosas sínteses desta cidade de São Sebastião e de suas culturas.
Carnaval-ritual: Carlos Vergara e o Cacique de Ramos (Cobogó), ótimo livro de Maurício Barros de Castro publicado no ano passado, é a homenagem ao Cacique que comprova com mais contundência a minha afirmação. Ela também encontra eco na forma como o bloco se infiltra em variadas manifestações artísticas, que vão de uma ala no próximo enredo do Salgueiro, cujo cortejo veremos na Sapucaí em fim de fevereiro ou outra data, à na exposição Eu sou Cacique!, de Alexandre Palma, que será inaugurada no próximo mês na galeria Modernistas, com curadoria de Augusto Herkenhoff.
Ao mergulhar nas relações entre Vergara e o bloco, iniciadas há exatas cinco décadas, em 1972, Barros de Castro rememora as características desta tribo em que todos são caciques – não há comandantes e comandados. Nos anos 1970, os integrantes usavam fantasias idênticas, criadas ano a ano a partir das variações e do desenvolvimento de um repertório gráfico, mas demonstravam sua distinção na decoração do rosto e do corpo com desenhos feitos com esparadrapo e dizeres criados com tinta ou pasta d’água. No período mais sombrio da ditadura militar, em meio ao parcial descontrole das ruas durante o carnaval, o Cacique era um reduto onde todos podiam ser iguais, mas ao mesmo tempo preservar suas diferenças.
Reflexão sobre a importância do carnaval para a arte contemporânea
A importância do bloco para a história do carnaval e para a música brasileira já foi bastante mapeada e é indiscutível – artistas como Luiz Carlos da Vila, Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz ganharam visibilidade entrelaçados com as raízes da tamarineira – mas o livro de Barros de Castro abre portas para novas reflexões sobre seus legados. No campo das imagens, por exemplo, a fortíssima identidade visual do Cacique encantou artistas como Hélio Oiticica, que pedia ao amigo Vergara que lhe enviasse todos os anos para Nova York, onde estava morando, o “índio de napa” mais recente.
A minúcia com que Barros de Castro descreve e desdobra o encontro entre Vergara e o Cacique nos dá chaves para que repensemos de modo mais corajoso as relações entre as artes moderna e contemporânea (aceitas como arte por museus, galerias e críticos) e a produção plástica, visual e conceitual dos artistas da folia. Carnaval-ritual apresenta um Vergara fascinado pelo Cacique também – e talvez principalmente – pelo fato de o bloco ser uma massa poderosa, mas extremamente não hierárquica. Ao longo dos anos em que fotografou o Cacique, o artista tentou se posicionar como um elemento dentro-e-fora do grupo (a espiral e o caramujo, presentes em trabalhos do artista que o livro explora muito bem, são caminhos para entender isso). Se por um lado essas imagens colaboraram para uma difusão da visualidade e do repertório musical do Cacique para além do Rio e do Brasil, por outro o bloco ofereceu a Vergara um campo de liberdade que não existia naquele momento no circuito das artes, vigiado pela censura e tolhido pelo abandono institucional e a escassez financeira.
Esta é uma dentre as duas veredas mais bonitas que Carnaval-ritual abriu para mim, como leitora, pesquisadora e, é claro, como carioca e foliã. Aquela que me levou a repensar e reafirmar o carnaval como fonte de alimento, abrigo e necessária dissonância para os chamados artistas contemporâneos (os carnavalescos também são artistas contemporâneos, assim como aderecistas, escultores e pintores de barracão – não custa lembrar).
Em texto anterior para esta coluna (leia aqui), problematizei abordagens da relação entre Hélio Oiticica e a Estação Primeira de Mangueira. Muito frequentemente, o artista é apontado como um “descobridor” ou “desbravador” da escola e do próprio morro. Pouco se fala sobre como a Mangueira fez com ele próprio se redescobrisse, como criador, pensador e ser humano. Quase nunca se dá nome e identidade aos corpos e saberes da verde-e-rosa, como os de Nininha Xoxoba, Mosquito ou Paulo Ramos, que fizeram com que os Parangolés e outras obras de fato acontecessem, o que lhes dá uma posição de possível co-autoria, ao menos de uma evidente parceria. Esse trânsito de influências, imagens e afetos fica bastante claro na história de Vergara com o Cacique.
Há ainda um aspecto relevante nessa sobreposição de circuitos: tanto nos primeiros anos da ditadura, com a relação Mangueira-Oiticica tendo a exposição Opinião 65 como marco, quanto no apogeu do governo Médici, com Cacique-Vergara, o carnaval pode ser entendido como uma alternativa ao estrangulado meio institucional de museus e galerias. Para pensar esse ponto, Carnaval-ritual lembra a exposição Bandeiras na praça, realizada na Praça General Osório em 1968, meses antes da assinatura do AI-5. Ela foi “disfarçada” e incorporada a um encontro entre a Banda de Ipanema e o Cordão do Bola Preta. Na ocasião, artistas como Oiticica, Anna Maria Maiolino e Antonio Dias apresentaram trabalhos em formato de bandeiras, com o carnaval cedendo seu território para que as mensagens e imagens tremulassem.
(Não deixa de ser sintomático que, nos últimos anos, em novo sufocamento totalitário do país, tantos artistas tenham criado bandeiras – de Raul Mourão a Laís Myrrha, de Leandro Vieira a Renata Lucas, de Mulambö a Desali, de Marcos Chaves a Jefferson Medeiros, de Paul Setúbal a André Parente. Mas isso é novelo para ser puxado em outro texto).
Salgueiro enfatiza força das misturas visuais do bloco
Parágrafos atrás eu disse que havia duas veredas principais me mobilizando como leitora-pesquisadora-carioca-e-foliã na leitura de Barros de Castro, e falta falar da segunda trilha antes que este texto acabe. Ela tem a ver com a síntese possível para esta cidade. “Quem é de Oxóssi é de São Sebastião”, lembra o samba feito para o próximo desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel, composto por Carlinhos Brown e parceiros. E quem foi Sebastião, senão um soldado que lutou para exterminar os tupinambás? Nos terreiros das umbandas do Rio, o inimigo volta como caboclo, falange vinda da cruza entre mitologias e saberes afro-cariocas e dos nossos povos originários.
O historiador Luiz Antonio Simas tem dedicado parte de sua escrita – nos livros, nas aulas e nas redes sociais, atuando ali como um intelectual público – ao elogio dessas inversões e dessas misturas. Em post recente, perguntou: “Falamos sobre a cristianização de ritos não-brancos. E a outra mão do jogo? Como capoeirizamos São Bento?”. Já no livro O corpo encantado das ruas, na crônica “Terreiro de São Sebastião, Okê”, Simas lembra que “para muitos é difícil admitir isso, mas os inventores do que há de mais forte na cidade do Rio de Janeiro não discutiram filosofia nas academias e universidades, não escreveram tratados, (…) não fundaram empresas, e só frequentaram os salões empedernidos para servir sinhás”. Carnaval-ritual afirma o Cacique como um articulador dessa força.
Quando o grupo foi criado, em 1961, na Zona Norte carioca, as sinhás já não existiam oficialmente, mas seguiam fortes, na sociedade e também no meio cultural, onde havia – e ainda há – uma hierarquia simbólica entre o que pode ou não ser considerado arte, tanto na música quanto na visualidade. Frequentemente, as obras e artistas diminuídos são aqueles que vêm do campo popular e têm origem negra. Se com o samba o Cacique furou a barreira ao literalmente ganhar dimensões intergalácticas, com Coisinha bonitinha do pai escolhida como a canção para ser lançada ao espaço, no campo das imagens também é muito impressionante o que o bloco foi capaz de criar. Barros de Castro lembra que seus fundadores eram jovens negros que, em sua grande maioria, tinham nomes de origem indígena – Ubirany, Ubiracy, Ubirajara, Aimoré, Idaiara, Maíra, Jurema, Ubiratã e Iara, entre outros – escolhidos pela relação de suas famílias com as religiões de matriz africana. Um grupo que celebra a potência desses povos originários escolhendo o repertório visual de tribos da América do Norte, como os apaches, para compor sua imagem.
Há algo mais carioca do que isso?
O que pode ser mais próximo da antropofagia – anunciada por Oswald de Andrade junto aos fundamentos de um “Matriarcado de Pindorama” e à pergunta existencial sobre “Tupy or not tupy?” – mas como ela era muito praticada muito antes do modernismo?
Depois da leitura de Carnaval-virtual, fertilizo novas pistas para entender por que o Cacique é revisitado tantas e tantas vezes, pelos artistas que transitam em museus e galerias e pelos criadores do próprio carnaval. O belo figurino em homenagem ao bloco criado por Alex de Souza para Resistência, próximo desfile do Salgueiro, evidencia a filiação do grafismo do grupo com um outro momento histórico do carnaval, aquele da chamada “Revolução salgueirense” empreendida a partir de Marie-Louise e Dirceu Nery, e que teve seu apogeu nos carnavais de Pamplona e sua parceria plástica com Newton Sá. Quando lembramos as escolhas de Pamplona e sua equipe por um grafismo conciso, predominantemente em preto, branco e vermelho, conectamos facilmente o Cacique à escola da Tijuca, e ambos a uma geometria ancestral que interessava a Oiticica e seus companheiros de Neoconcretismo, especialmente a Lygia Pape.
Ao apresentar a memória de Pamplona e do Cacique no mesmo desfile, Alex de Souza e a equipe artística e cultural do Salgueiro atestam o vigor da visualidade e também dos fundamentos do bloco de Ramos. Eles provavelmente nos impactam de maneira tão avassaladora porque são tão díspares, ruidosos e contraditórios quanto a identidade de cada um que nasceu ou escolheu ser carioca. E nos levam a pensar em outros momentos em que o carnaval criou samplers entre as imagens dos povos originários e outras referências, caso do antológico Tupinicópolis, desfile de Fernando Pinto para a Mocidade em 1987. Afinado com o espírito polissêmico da arte dos anos 1980, muito mais do que com as referências da Tropicália geralmente associadas à sua obra, o artista concebeu indígenas com cabelos punk-moicanos em vez de cocares. Eles sambavam usando patins em pisos quadriculados de danceteria e reafirmavam o carnaval como um dos territórios mais férteis para entendermos que as imagens, como os corpos em desfile, estão em sempre em movimento. Para elas, as imagens, a única coisa constante é sua natureza de trânsito e ruído, transformação.
O Cacique sempre soube disso, e apostou nas misturas. Em sua história, tem mostrado que não é possível aprisionar as imagens ou isolar as origens (“A pureza é um mito” – olha o Oiticica aí de novo, gente!). O “índio de napa” do bloco – apache, africano, caboclo, mestiço – é um igual, feito de muitos diferentes. Assim “quase arrebenta as retinas de quem vê”, como cantaria Chico Buarque em Carioca.
Okê.