Circulou nas duas últimas semanas pelas redes sociais um post que criticava o fato de uma escultura monumental de Amilcar de Castro (1920-2002), instalada em um canteiro da orla do Leblon, ter sido ocupada por alguém em situação de rua, que transformou a obra de arte em abrigo. A publicação no Instagram, apagada por quem a criou depois de mais de 100 comentários adversos de artistas, críticos e pesquisadores, marcava os perfis do prefeito Eduardo Paes e de outras autoridades da gestão municipal, expressando com bastante ênfase certa revolta pela apropriação da escultura como uma espécie de casa.
Discordo frontalmente do post, mas minha intenção aqui não é de apedrejamento. O objetivo desse texto é discutir a obra de Amilcar – e através dela os possíveis usos e funções simbólicas de uma obra pública -, não um post do Instagram. Neste caso, o meio é menos importante que a mensagem, e o ato de “cancelar”, tão em voga nas redes, mesmo quando calibrado por motivos justos, tem sido às vezes alimentado por uma ira que pode assumir contornos totalitários.
Voltar a esse assunto, que gerou as reações inflamadas e virou até post no ótimo perfil de memes @newmemeseum, é tentar colaborar uma discussão um pouco mais vagarosa e reflexiva. Por limitação de caracteres, dispersão cognitiva ou preguiça dos debatedores, as contendas que começam e terminam nas redes sociais, sem registros para o que pode estar adiante, tendem a ser um coliseu violentíssimo e descartável. Não me interessam essas duas qualidades, pois a magnitude da obra de Amilcar é algo que exige outras, como afeto e profundidade.
O artista mineiro foi um dos pilares do Movimento Neoconcreto e do construtivismo brasileiro, contribuindo para uma nova compreensão da escultura não-figurativa. Foi ainda o responsável pela histórica reforma gráfica do “Jornal do Brasil” nos anos 1950 e, indiretamente, assumiu o papel de ponte para a revolucionária relação de Hélio Oiticica com a Estação Primeira de Mangueira, já que ele e o também artista Jackson Ribeiro levaram o colega mais jovem para o trabalho no barracão da escola.
A escultura pivô da polêmica, Estela, é dos anos 1990 e réplica de uma peça apresentada pelo artista na Bienal de São Paulo em 1953. Foi originalmente instalada no Rio em 1995, na Travessa das Belas Artes, vizinha ao Centro de Artes Hélio Oiticica, no entorno da Praça Tiradentes. E retirada de lá em 2012, para nova instalação no Leblon, sob rumores de que a família e os representantes da obra do escultor, morto 10 anos antes, estariam incomodados com o fato de sua peça ter se transformado em – muitas aspas nessa hora – “abrigo pra mendigo”.
No mesmo ano de 2012, a museóloga Mariana Várzea e o arquiteto Miguel Papi realizaram um projeto de catalogação virtual das obras públicas do Rio, em todos os períodos históricos. Convidada por Mariana a participar como uma das críticas-comentaristas das esculturas, quis falar sobre a obra de Amilcar, já situada no Leblon. Minha escolha se deveu não apenas à enorme importância do artista, com quem conversei inúmeras vezes no Rio e em seu ateliê na mineira Nova Lima, mas também para expressar meu incômodo com a transferência da peça para um lugar que, no meu entender, é completamente inadequado a ela.
Nove anos depois, o ruído em torno de Estela me faz voltar aos argumentos. Diferentemente do que ocorria no Centro, o canteiro da Avenida Delfim Moreira, situado no fim do Leblon, próximo à Praça Zózimo Barroso do Amaral, é um lugar de trânsito intenso, e o nicho onde a peça está hoje não permite ao passante que a contorne, estabelecendo com ela a relação fundamental pretendida pelos artistas do período. Ela reside na apreensão da obra de arte através de uma relação única de espaço-tempo estabelecida por cada observador.
No caso específico das obras de Amilcar, o escultor ampliava a demanda por essa percepção participativa, que é quase co-autora da obra, pelo uso do material (o aço cortén, que vai imprimindo a passagem do tempo em sua superfície) e pelo magnífico trabalho de corte e de dobra realizado nos planos de cada escultura. A grande contribuição de Amilcar e outros artistas construtivos no campo tridimensional é eliminar a hierarquia na “leitura” de uma escultura por parte do público: não há mais frente, nem verso, bem base, nem topo. A peça é um todo de planos desdobrados, que vão se modificando e oferecendo novas vistas à medida em que nosso corpo percebe o volume, contornando-o, interagindo com ele no espaço e no tempo – cujas percepções são variáveis de pessoa para pessoa.
Ora, instalada num canteiro estreito, em uma pista dupla de muito fluxo de trânsito, a escultura é “achatada” a uma bidimensionalidade e praticamente condenada a ser vista “de frente” ou “de verso” , e quase exclusivamente por quem está dentro de um carro. No Centro, convivendo com a pluralidade de classes sociais que povoa a Praça Tiradentes e seus arredores, ela podia ser vista de vários ângulos e vivia plenamente; no Leblon, é um corpo exilado e confinado. Muito, muito triste.
Mas vejam só como é o poder da obra de arte. Anos depois do exílio, nesse Rio tão degradado por bispos, pandemias e genocídios, a peça de Amilcar supera as condições adversas a que foi submetida e parece recuperar sua vocação. Sim, repito, vocação. Seus recortes pontiagudos são praticamente um convite e vêm oferecendo teto a quem não tem.
Não há romantização aqui: o ideal é que ninguém precise de uma escultura para encontrar abrigo. Mas, quando alguém precisa, não é o melhor destino possível para uma obra pública? Que desejo poderia ser mais ambicioso, para um artista, do que ver aquilo que imaginou servindo de repouso e proteção para os mais vulneráveis? Pode haver destino mais nobre para a arte – a maior prova de nossa humanidade – do que aplacar e confortar as fragilidades humanas? O que poderia ser mais grandiloquente, para alguém que pertenceu à geração utópica e humanista de Amilcar, do que ter de fato sua escultura vertida em espaço, em casa, estabelecendo um diálogo franco com os corpos?
Mariana Várzea lembra, aliás, que em 1999, quando Amilcar fez uma exposição no Centro de Artes Hélio Oiticica, levando ainda para a Praça Tiradentes significativas peças monumentais, essa mesma escultura que é debatida agora estava ocupada na Travessa das Belas Artes pela população em situação de rua da vizinhança, seus colchões e cobertores. Uma Estela/estrela transformada em ninho, casulo. A museóloga perguntou ao artista o que ele achava daquilo e Amilcar respondeu que “finalmente” uma obra sua tinha “de fato encontrado uma vocação pública”. Pois é.
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Sobre apropriações de esculturas e intervenções públicas, recentemente conversei com o artista Heleno Bernardi sobre o trabalho Enquanto falo, as horas passam que ele realizou em 2009, na Central do Brasil e aparece aqui em foto de Rafael Mósca. Na imagem, a forma de instalação que o artista diz ter aprendido com os meninos que trabalham como vendedores ambulantes e engraxates na estação. Para ele, que imaginou as esculturas repousadas sobre os degraus do prédio, relativamente estáticas, a forma “correta” de Enquanto falo é a do uso que fizeram de seu próprio trabalho. Afinal, uma obra pública precisa prever o público. Pois é.
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Quase no fim, aquele alô para o prefeito Eduardo Paes e suas equipes municipais de Cultura e Conservação sobre os contrastes no trato com a escultura contemporânea no Rio. Uma visita ao Parque da Catacumba nos enche de alegria, com as esculturas de artistas como Franz Weissmann e Carybé tinindo, em projeto que foi coordenado pela curadora Vanda Klabin. Mas obras de Ivens Machado (1942-2015) e Celeida Tostes (1929-1995) estão nesse momento precisando de socorro urgente.
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No caso de Ivens Machado, um dos maiores artistas brasileiros dos anos 1970, a peça monumental sem título datada de 1997, que ficava no Largo da Carioca, foi retirada dali para as obras do VLT, e jamais voltou ao lugar e nem foi instalada em outra região. Está, desde sua retirada, em 2015, no depósito chamado popularmente de “cemitério das esculturas”, na Leopoldina. Nunca teve o destino reavaliado pelo poder municipal, o que significa que estamos sendo privados do convívio com esse patrimônio, que é público. Pois é.
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Já as obras de Celeida Tostes, pioneira que foi professora do Parque Lage, estão no Parque da Cidade, na Gávea. Estão é modo de dizer. Se a reabertura do Museu da Cidade é motivo de comemoração, o estado de peças da artista na área externa é de fazer chorar. Obras como Roda e Triângulo (ambas s.d.) ainda existem e precisam de muitos reparos, mas há outros conjuntos literalmente perdidos, que precisariam ser refeitos com cuidadosa pesquisa. Um problema que já se arrasta por muitos anos. Pois é.