Nito senta no canto do bar igual um zumbi exilado da luz. Nem o sol festeiro do verão carioca, sol de praia e carnaval, o anima. Seu coração de torcedor teima em invernar.
Os olhos mudos estacionam num porão da alma onde as cores não entram. A cabeça e as costas pesam uma espera interminável. Se fumasse, já teria despachado dois maços naquele tasco de manhã. O coração de torcedor é uma navalha.
Nito parece outro. Despreza o papo no balcão sobre De La Cruz no Fla e Jeffinho de volta ao Botafogo. Logo ele, fominha das resenhas.
As palavras hibernam num desgosto ressecado, vizinho do luto. Balbucia o chope ao garçom com a voz esquálida de um socorro pedido debaixo de escombros. Luta para sobreviver ao coração petrificado.
O rubro-negro ao lado se compadece. Puxa assunto. Não percebe que o silêncio acolheria melhor do que a prosa bem-intencionada.
“Por que está desse jeito? Morreu alguém próximo?”
Nito cospe o bate-pronto ranzinza:
“Morreu. O futebol morreu.”.
“Não faz drama. Verdade que o seu Vasco quase caiu e o meu Flamengo precisa melhorar, mas o ano mal começou. Eles vão se acertar.”.
“Não é nada disso…”.
“É a seleção? Bom, ela sempre ressuscita”.
“Não, nada a ver.”.
O coração de Nito não dói a ausência de um futebol verdejante, idealizado entre a memória e o sonho. Dói uma ausência prosaica, mas torturante. Dói o futebol de férias:
“Essa época é uma desgraça. Só especulação de jogador que vai, jogador que vem. Só jogo lá de fora. Temos, no máximo, as migalhas da Copinha, com a garotada ainda verde, um milhão de equipes e os campos alagados. Um tédio.”.
“Não exagera. Daqui a pouco nossos clubes retornam aos gramados. Enquanto isso, a gente se distrai com o campeonato inglês, o espanhol, o alemão. Rolam uns joguinhos ótimos, melhores que aqui”.
“E daí? Eu quero é torcer, preciso torcer, senão tudo fica chato demais.”.
Deixar de torcer produz em Nito a asfixia que se abate sobre uma criança sem papel e lápis para desenhar, sem árvore para macaquear. Ligeiramente menos desgostoso do jejum sazonal, o colega pondera:
“Calma. Agora em janeiro começa o Carioca”.
“Não se iluda, parceiro, os titulares só estreiam mês que vem. Estão na tal pré-temporada. A coisa começa a engrenar depois do carnaval, talvez só em março, abril. Não aguento.”.
Os dois se calam numa resignada cumplicidade. Velam uma saudade rasteira, com prazo de validade. Pouco importa. Mesmo uma saudade rasteira paralisa os músculos, goteja sobre o espírito um vazio cortante.
A agonia de Nito é a agonia de milhões. Torcedor não tira folga.
Não se pode amansar angústia assim como quem lança um pedaço de carne para desviar o foco do cão brabo. Tamanha ansiedade não se distrai nem com as pinturas orquestradas pela babel de craques nos tapetes britânicos, lindas de se ver.
Um passista não aplaca o apetite dos pés com o desfile da tevê. Precisa tragar a folia, está no sangue.
Nito agoniza uma fratura próxima à mutilação. O estio de jogos do time cultuado, jogos à vera, quebra a espinha que sustenta a filiação com o futebol e, por tabela, com o mundo.
Nenhuma distração dá conta de restaurar a vertigem que conecta o peito às camadas sociais, afetivas, simbólicas do universo futebolístico. O calendário não coincide com a urgência de reencontrá-la.
Torcer constitui um salto incontrolável até essa vertigem, até a borda do irracional. Um salto no escuro, incompreensível àqueles para os quais o esporte não passa de entretenimento, aos menos interessados em sentir suas garras do que em exibir suas faces nas redes.
Não adianta sugerir passeio com a família, caminhada na orla, drinque ao entardecer, tampouco uma nova série coreana, um jogão europeu, um paliativo sub-20. Não adianta sequer acenar com reforços à vista.
Não adianta. Coração de torcedor não se deixa levar. Inconsolável. Só a vertigem dissolve o seu tormento, o seu desamparo de órfão.
Para esse coração, 2024 nunca chega. Nito respira fundo, fuzila a folhinha na parede. Pede mais um chope.
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Fôlego das ruas
Cada vez mais recheadas de atrações culturais e ativações de marketing, as corridas de rua incrementam a temporada esportiva do Rio. A tradicional ASICS Golden Run está marcada para 14 de julho.
Reunirá dois trajetos: de 10 e de 21 quilômetros (meia maratona). As inscrições estão abertas.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.