A ginga afetiva do torcedor globalizado
Expressa na babel de camisas estrangeiras, diversificação de laços com o mundo da bola não reduz peso social e comercial das filiações locais
O carioca não veste a camisa do seu clube como vestia. Essas estampas do amor incondicional jamais sairão de moda. Continuam lindas.
Mas parecem frequentar menos as calçadas.
Fatores socioculturais e econômicos explicam a mudança. O primeiro deles talvez seja a ginga transnacional do torcedor contemporâneo, identificada por pesquisadores como o sociólogo Richard Giulianotti.
Da tabela entre cibercultura e tradições boleiras, emergem torcedores híbridos. Harmonizam vínculos clubísticos de origem, natureza e intensidade distintas. Afastam-se da monogamia.
Acostumados desde cedo ao vasto acesso a equipes e atletas mundo afora – no game, nas telas, na palma da mão –, expandem as fronteiras afetivas com o futebol. Adicionam simpatias à preferência primária, geralmente influenciada por pais ou amigos.
Coerente à fugacidade hipermoderna, o comportamento flexível aparenta trair a velha guarda. Jovens o exercem com legítima naturalidade. Manifesta-se na babel de uniformes estrangeiros em campinhos, praças, shoppings.
A dispersão do torcedor globalizado coincide com o sucateamento do campeonato estadual e o avanço de disputas nacionais e continentais. Rendem mais prestígio, visibilidade, grana.
Mal gerido e depreciado, o Estadual rebaixou-se a aquecimento dos grandes para a temporada. Virou um estorvo no calendário sufocante à elite (paradoxalmente capenga à maioria dos 656 clubes profissionais). Uma jabuticaba que resiste à padronização do modelo europeu.
A atrofia da competição inaugurada em 1906 periga desidratar gradualmente as rivalidades locais. Tiro no pé.
Menosprezadas por olhares cosmopolitas, as esgrimas caseiras detêm inestimável valor histórico e comercial. Constituem um cimento com o qual torcedores pavimentam suas identidades, seus hábitos, suas filiações tangíveis e intangíveis ao futebol.
Oposições lúdicas – no prédio, no bar, no escritório – lubrificam uma rica sociabilidade. Alimentam prosas, relações, receitas. Cultivá-las integra o beabá do marketing instado a desdobrar o consumo por vários meios e públicos.
Sem confrontar a ambicionada internacionalização das marcas cariocas, a tarefa inclui uma complexa calibragem de bens e serviços. Experiências e produtos licenciados devem contemplar diferenças socioeconômicas do país tingido pela massificação do futebol.
A difícil dosagem não caracteriza benevolência, e sim uma visão de negócios compatível à demanda crescente por responsabilidade social. A diversidade dos uniformes haveria de acrescentar versões ou coleções verdadeiramente populares. Até para coibir a pirataria.
Como os estádios, o carnaval, a praia, camisas de clube se elitizaram. Costumavam povoar as peladas, os programas despojados, as esquinas. Agora habitam festas, reuniões. Ganharam o status de “roupa pra sair”.
Naturalizada pela lógica mercantil, a ressignificação distancia essas expressões identitárias das calçadas. Mas não exclui seu peso na formação e no coração dos torcedores.
Tamanha força simbólica as mantém entre os objetos mais colecionados e cultuados no universo da bola. Nem por isso seu lugar deixa de ser a rua.
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O difícil basta
As agressões ligadas a quatro jogos recentes retratam a nuvem de barbárie sistematicamente à espreita. Dela não está imune o futebol, cujo tônus social e econômico se abastece de paixões, compulsões.
Os ataques em Salvador, Recife, Curitiba e Maringá dimensionam o crônico desafio da segurança em torno dos espetáculos esportivos. Exige bem mais do que reações indignadas e discursos protocolares.
A contenção da violência recruta esforços de dirigentes de clubes, federações, estádios, governos; de jogadores, treinadores, torcedores, patrocinadores; de agentes públicos e privados. Além do investimento em educação, envolve inteligência policial, fiscalização rigorosa e a efetiva aplicação de penalidades esportivas, jurídicas e financeiras.
Em meio às turbulências no comando central do nosso futebol, a Federação dos Atletas Profissionais (Fenapaf) cobra punições severas. Já deveriam ter sido assinaladas.
Os crimes impõem um basta. Não virá sem a mobilização de lideranças políticas, administrativas, econômicas, sociais, esportivas. O engajamento de jogadores influentes ajudaria a costurá-la.
O ex-atacante e comentarista Casagrande, um dos artífices da Democracia Corinthiana, está rouco de tanto pedir atitudes assim aos congêneres atuais. Talvez um dia a ficha caia.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.