A resenha refresca a inflação. O tomate dispara, a cenoura nem se fala, mas o fiado da conversa continua garantido. Nada lhe escapa. Da Ucrânia à dancinha emergente, o vasto mundo passado a limpo.
Vem de lá a pergunta milionária: cadê o Camisa 10? Em meio aos debates sobre linhas altas e baixas, sobre esquemas propositivos e reativos, as esquinas põem a bola no chão: precisamos reaver o 10.
Incômodo crônico. Há muito botafoguenses, tricolores, vascaínos sentem-se órfãos desse oxigênio do futebol brasileiro e mundial. A feira ecoa o persistente desamparo.
“Vocês não podem falar. O 10 de vocês é gringo”, adianta-se o freguês, antes que o dono da barraca, um flamenguista de língua afiada, tire a onda costumeira. “Deixa de chororô. O Arrascaeta sobra. Um verdadeiro 10, peça rara hoje em dia. Não importa de onde veio”, rebate orgulhoso. Nem os invejosos discordam.
Talvez num cantinho da alma o feirante confesse a saudade de um meia assim feito na Gávea, como prescreve o slogan avalizado pela geração do Galinho. Pet chegou perto. O berço sérvio é um detalhe, diria Parreira.
Revelar e reter um 10 de almanaque – capaz de armar, arrematar, antever, surpreender – anda mais difícil do que costura de terceira via eleitoral. As razões estendem-se das fragilidades econômicas e administrativas, raízes do êxodo precoce de talentos, ao xodó por meias versáveis, consistentes, não necessariamente cerebrais.
Todo grande clube ostentava a obrigação de fabricar, a cada ano, um meia-armador e um ponta dionisíacos. Eram testados nas preliminares. As arquibancadas deliciavam-se em medir as promessas, projetá-las no time de cima.
Agora os campeonatos de base preenchem, até certo ponto, o papel das preliminares. A TV fechada e o streaming ampliam as vitrines do amanhã. Poucas indicam um horizonte restituído de Camisas 10.
O número eternizado por Pelé simboliza maestria. O 10 detém a batuta. Ao mesmo tempo solista e regente. Dá vida à orquestra, liga as suas partes. Distribui simplicidade, elegância, ousadia.
Ele escasseou nos últimos 30 anos, desbotando pouco a pouco, igual foto antiga. Muito volante, muito atacante ou meia-atacante (categoria do nosso solitário craque Neymar), nada de maestro.
O estio se reflete na seleção. Desde Rivaldo, relembrado por Cláudio Henrique na revista Placar, não temos um expoente da estirpe de Ademir da Guia, Zico, Rivellino, PC Caju, Zenon, e outros menos badalados: Pintinho, Mendonça, Pita, Djair, Deco. (Próximo do genial, Ronaldinho Gaúcho esteve mais chegado ao ataque.)
Ganso ensaiou pegar o bastão, mas logo entregou-se à cadência de pelada natalina. Num dia bom, seus lampejos ainda libertam qualquer equipe da mesmice.
Escretes competitivos até podem prescindir de meias-armadores, uma vez que conjuguem apuro técnico, eficiência tática, pulmão, entrosamento. À beleza, contudo, o 10 clássico segue fundamental.
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A diferença do pensador
Um tanto reféns do 2019 encantador, rubro-negros culpam sucessores do técnico Jorge Jesus pelo desvio da perfeição. Afinal de contas, os protagonistas permanecem.
Diante do elenco prodigioso, faz sentido perseguir o sarrafo alto erguido pelas conquistas da Libertadores e dos Brasileiros. A concorrência mais dura e as picardias do tempo não arrefecem a obstinação do torcedor.
Ainda assim, vagueia atrás da orelha uma pulga em torno do sonho de reencontrar o passado recente. Qual o peso da saída de Gerson na dificuldade em retornar ao encanto?
Sob o condão do treinador português, o ex-atacante vestiu o manequim do meia-armador. Nenhum outro lhe cairia melhor. Nascia ali um time de encher os olhos.
Sabemos a diferença que faz um pensador. Felizmente alguns bambas não nos deixam esquecê-la.