Ana Beatriz Bulcão conheceu o pódio muito antes de faturar a primeira das 90 medalhas conquistadas nas duas décadas com a espada em riste. Ainda bebê, venceu a subnutrição com a ajuda da família que a adotara. Logo descobriria no esporte uma janela à saúde. A menina fez um pouco de tudo no clube Pinheiros, em São Paulo, até abraçar, meio por acaso, a esgrima: “Era a única modalidade que eu conseguia conciliar com a escola”. Sorte nossa.
Radicada desde 2018 nas imediações de Roma, onde treina “com os melhores” de olho numa vaga para os Jogos de Paris, Bia finta a tentação das massas italianas com a inteligência, a habilidade e a firmeza d’alma habituais. Rendem-lhe vitórias no florete – algumas históricas, como o bronze no Pan de 2019 – e na luta constante contra discriminações estruturais: racismo, machismo, xenofobia.
A prosa mansa, lúcida, empunha a convicção dos que cobram punições financeiras e esportivas mais severas para estancar ataques racistas. “A educação também é crucial à construção de uma sociedade menos preconceituosa”, lembra a esgrimista de 29 anos, num papo por vídeo, às vésperas de embarcar para o Pan 2023, disputado em Lima.
Antes de retornar à rotina romana, ela emenda uma breve incursão carioca. Nos intervalos das aulas aos militares do Centro de Capacitação Física do Exército (CCFEx), a craque da esgrima programa passeios pela Urca. “Adoro praia”, alegra-se.
A conversa com Bia Bulcão, sintetizada abaixo, integra uma parceria entre o Departamento de Comunicação da PUC-Rio e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Participaram da resenha os jornalistas Creso Soares Jr., professor da universidade, e Luiz Paulo Lima, diretor da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da ABI; e o estudante Gustavo Bertolozo, coautor deste texto.
Como anda a preparação para os Jogos de Paris, no próximo ano?
Desde abril, são disputadas as competições classificatórias para a Olímpica, inclusive o Pan, agora em junho. Participar de tudo é importante. Em 2018, passei a treinar no Frascati Scherma, nas imediações de Roma. Neste clube, treino com alguns campeões olímpicos, campeões mundiais e muitos outros atletas de ponta. Tenho o acompanhamento de mestres experientes, para poder aumentar o meu nível esportivo. Também é estratégico estar na Europa, onde se concentra a maioria das provas internacionais. Claro que a gente passa por algumas dificuldades no meio do processo, porque é um ano inteiro de treinos e competições. Às vezes, vem alguma lesão.
Depois de ter participado da Rio 2016, Paris seria sua segunda Olimpíada. Está confiante na vaga olímpica?
Sim, há uma boa chance de ir para Paris. Pela forma como as vagas estão distribuídas, e considerando o ranking mundial, estou na briga com mais duas atletas. A diferença é de meio ponto entre uma e outra. Muita coisa pode mudar nas competições. Depois do Pan e do Mundial, teremos uma visão mais clara do caminho ideal para a classificação aos Jogos: pelo ranking ou pelo pré-olímpico.
Qual a expectativa em relação ao Pan e outros torneios que abrem caminho para Paris 2024?
O Pan-Americano que é super importante. Vale muitos pontos para o ranking mundial. Depois disputo o Mundial, em julho. E ainda tem o Pré-Olímpico, segunda chance de o Brasil conquistar a vaga olímpica.
No meio dessa maratona de competições, você ainda dá uma passada no Rio, no fim de junho, para treinar militares. Qual a sua relação com a cidade da sua estreia olímpica?
Sempre foi um dos meus lugares preferidos. Depois da experiência nos Jogos de 2016, passei a ter uma conexão especial com a cidade. Como sou atleta do Exército, tenho ido bastante ao Rio para fazer cursos de reciclagem e para passar ensinamentos da esgrima aos militares. Quando sobra um tempo livre, vou à praia, gosto de correr na orla, andar de bicicleta. Adoro passear na Urca. Aquela vista é maravilhosa.
Para construir essa carreira bem-sucedida, você tem superado desafios dentro e fora do esporte, desde a subnutrição, ainda bebê, às lesões decorrentes da intensa agenda de treinos e provas. Você sofre também com o racismo?
Sofro. É algo que está na sociedade independente do esporte. Infelizmente, algo que está na cultura. É estrutural. Enquanto a gente não mudar na sociedade, isso vai continuar se refletindo no esporte. O racismo é, grande parte, velado, inclusive no Brasil. Como uma criança preta adotada por uma família branca, sofro racismo desde pequena. Muitas vezes aconteceu de eu estar acompanhada da minha mãe e não me identificarem como filha dela, de eu sair de lojas esportivas e me olharem torto. É uma coisa que só você sendo dessa cor da pele entende, e aprende-se a colocar uma cara mais dura para enfrentar. Mas não precisava ser assim.
Muitos analistas cobram punições esportivas mais rigorosas para coibir os sistemáticos ataques racistas a atletas, com a perda de pontos ou até a suspensão de campeonatos aplicada ao clube corresponsável pela violência. Você concorda?
Esse pode ser um caminho. Por exemplo, no futebol, talvez com punições como a perda de pontos, provavelmente as torcidas entendam a gravidade do impacto do que elas estão fazendo, afetando uma coisa que elas amam. Este caminho talvez seja um início para se compreender a gravidade do racismo no esporte.
Além da punição esportiva, que outras medidas podem erradicar discriminações como o racismo, a xenofobia, a homofobia?
Seria necessária uma ação educativa, em relação às pessoas no meio esportivo. Hoje o Comitê Olímpico do Brasil, por exemplo, promove um curso neste sentido. Todos os atletas e membros de equipes olímpicas são obrigados a fazer esse curso de prevenção tanto de racismo quanto de assédio e outras discriminações. A educação é a forma mais correta de combater esses preconceitos.
Radicada na Itálica, você sofre discriminações na Europa?
Sim. Não é só pelo fato de eu ser negra, mas de também ser uma brasileira na Europa. Há discursos de superioridade, porque a esgrima começou na Europa.
Como se você fosse uma intrusa?
Exatamente. Existe até certa dificuldade com a arbitragem, para ganhar esse respeito. Ele vem sendo conquistado conforme os resultados aparecem. E eu escuto comentários que talvez não fossem da mesma forma no caso de um atleta europeu branco. Isso reflete princípios enraizados na nossa sociedade.
Falando em valores enraizados, como esporte e educação podem se unir para combater as mentalidades discriminatórias?
É importante falar mais sobre os problemas de discriminação, tanto de gênero, de raça, de origem. O esporte faz parte desses esforços. O esporte sempre é um bom meio de educação, e de conexões positivas entre pessoas.
Essas conexões têm sido feitas também, e cada vez mais, por esportes eletrônicos. A esgrima pode fazer parte disso?
Outro dia estava vendo um vídeo do Mark Zuckerberg (dono do Meta) jogando, em realidade virtual, com a campeã olímpica americana. É uma forma de despertar o interesse, de as pessoas conhecerem melhor as modalidades que não são tão populares, como a esgrima.
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A entrevista com Bia Bulcão integra a parceria firmada entre o Departamento de Comunicação da PUC-Rio e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
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Capital da corrida
A vocação esportiva, a aquarela a céu aberto e a agenda intensa de provas consolidam o Rio como uma capital das corridas de rua. A tradicional ASICS Golden Run retorna à cidade em 2 de julho.
Banhados com a luz do outono carioca, os participantes correrão 10km ou 21km (meia maratona). O percurso mais longo vai do mirante do Leblon até o Museu Histórico Nacional, no Centro, com chegada no Aterro. Prenúncio de um domingo animado.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.