O Cristo é testemunha. Toda terça e quinta Vinícius Zimbrão parte às cinco da matina de Botafogo para a Mesa do Imperador, na Vista Chinesa. Pedala 25 quilômetros até o cartão-postal dourado de verde e de vista. “Ver o Rio nascer lá de cima compensa o esforço. É um pódio”, encanta-se o professor e competidor de ciclismo.
O pódio é compartilhado por uma galera crescente. Na contramão da crise, as vendas de bicicletas subiram 50% ano passado. Reflexo da corrida às atividades ao ar livre desencadeada pela pandemia. A frota nacional já ultrapassa 70 milhões de unidades.
A bike – camelo, para os antigos – é um estilo de vida em alta. Movimenta uma indústria turbinada por aplicativos e serviços online. Desperta novas formas de ver e viver o Rio, novas relações e modelagens urbanas. Impõe ao poder público, e a todos nós cidadãos, amadurecimentos estruturais compatíveis aos ganhos de saúde, lazer, mobilidade sustentável.
“Vinte anos atrás a gente encontrava dez, no máximo vinte ciclistas na Vista Chinesa. Todos se conheciam. Hoje quinhentos passam por ali às terças e quintas”, compara Zimbrão, cuja genética profissional arrancou da infância em São José do Vale do Rio Preto, na serra fluminense: “Usava a bicicleta pra tudo. Coisa de cidade pequena”. Coisa de cidade inteligente.
Zimbrão ensina as técnicas do esporte há aproximadamente três décadas. Desde 2012 conjuga as aulas de spinning com um curso a céu aberto. Forma 25 ciclistas a cada quatro meses. Todos atraídos pela rima entre condicionamento físico, consciência ecológica e interação social. Um mergulho na alma carioca.
Muitos guiam-se pelo encontro com a memória afetiva das pedaladas infantis “Sou ciclista desde que me conheço por gente. A paixão pela bike me acompanha ao longo das mudanças de cidade e país”, conta o presidente da Oi, Rodrigo Abreu.
Ainda é madrugada quando Rodrigo ruma, três vezes por semana, para Paineiras, Sumaré, Prainha. Extrai do hábito novos olhares sobre o Rio. Renova também o fôlego para a maratona no escritório: “O ciclismo é o meu antídoto contra o estresse de uma vida executiva de altíssima intensidade”.
Antídoto especialmente milagroso nesses tempos bicudos. “É o que tem salvado a mente”, alivia-se a jornalista Rafaela Pereira. Nenhum estresse resiste às brumas matinais do Sumaré ou aos primeiros raios alaranjando a curva do S, no Alto da Boa Vista. Instantes eternizados ao lado do marido Peter.
Eles seguem a cartografia comum aos ciclistas incorporados à cena carioca. Cruzam a imbatível costura do mar com a montanha. Nos fins de semana, dão uma esticada ao Bike Park de Petrópolis e a trilhas de Vassouras.
Faz dois anos que Rafa sacia o apetite ambiental no cardápio das pedaladas. Intercala asfalto e terra com pitadas de aventura. Reforça a tendência mista: “Mais pessoas buscam uma bicicleta de estrada, para facilitar as subidas até os melhores mirantes, mas resistente a trilhas moderadas. A modalidade se chama gravel, referência ao piso de cascalho que essa bike suporta”, explica Zimbrão, também embaixador do Novembro Azul, campanha de prevenção contra o câncer masculino.
Afinada a cada uso – estrada, montanha, gravel –, a orquestração da bicicleta e dos acessórios lubrifica o cultivo de amizades. Lojas e oficinas, como as da Pacheco Leão, no Jardim Botânico, revelam-se clubes informais. Dissipam as fronteiras entre veteranos e iniciantes, profissionais e amadores. Entre integrantes de assessorias ou grupos especializados e ciclistas autodidatas.
Nem o convívio remoto exigido pelas restrições sanitárias freia o intercâmbio de experiências, histórias, dicas. Nelas a executiva Júlia Paletta pavimenta tanto a rotina sobre duas rodas quanto a intimidade com a nova morada:
“Sou de Minas, e vim para o Rio depois de ter morado na China. A turma do pedal me acolheu como se já me conhecesse. O espírito acolhedor faz a diferença, assim como a proximidade de uma natureza deslumbrante. Bastam alguns quilômetros de pedalada para estamos numa floresta”.
Rodrigo Abreu também degusta a vocação agregadora da turma do pedal. No Rio desde 2013, ele lembra: “A bike me ajudou a fazer novos amigos, a conhecer a cidade por ângulos diferentes e a me sentir acolhido. Não fosse assim, não viveria as experiências de estar em Barra de Guaratiba, Prainha, Grajaú-Jacarepaguá, Alto, Paineiras, Cristo e tantos outros lugares incríveis para onde a bike me levou e continua me levando”.
O deslumbre agradecido de Rodrigo, Júlia, Rafaela e demais ciclistas multiplicados pela cidade – principalmente na Zona Sul e na Barra – confronta-se com a necessidade de melhorar o acesso, a conveniência e a segurança dessa prática ascendente porém ainda distante da maioria da população. (Uma bike de ciclismo não sai por menos de R$ 3 mil.)
Os deveres de casa envolvem mais do que reformar e ampliar os 400 quilômetros de ciclovias cariocas. Tampouco limitam-se a programas de incentivo pontuais e ao bem-vindo aporte de competições como o Grangiro, disputado mês passado em Búzios, e o UCI Gran Fondo, programado para agosto.
O salto para uma cidade plenamente amigável à bicicleta suscita uma revisão do espaço urbano, como pregava o geógrafo Milton Santos (1926-2001), entre outros bambas do pensamento crítico aplicado na arquitetura social. A reflexão profunda em torno do modelo urbano desejável – humanitário, inclusivo, criativo – fundamentaria políticas públicas e investimentos privados que potencializem as pedaladas como vetores de saúde, bem-estar, integração, mobilidade, responsabilidade socioambiental.
Rodrigo e Zimbrão enfatizam o relevo educacional nesse processo. “A bicicleta ocupa um espaço crescente em diversas cidades no mundo. A educação cidadã é decisiva ao avanço”, evoca o professor. O executivo completa: “Precisamos de uma conscientização, principalmente dos motoristas, de que os ciclistas têm de ser respeitados e protegidos. Tanto os que praticam por esporte quanto os que usam a bicicleta no dia a dia para se locomover”
Pequenas grandes transformações largam assim – da educação, do senso comunitário, da cidadania. Não custa recordar a distinção feita pelo dramaturgo Augusto Boal (1931-2009) no documentário “Utopia e Barbárie”, de Silvio Tendler:
“Todo cidadão deve ser engajado. Viver em sociedade não é andar por aí. Isso é vegetar em sociedade. O verdadeiro cidadão é aquele que transforma a sociedade”.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.