O esporte moderno drena tensões coletivas para uma dimensão teatral, mimética. Uma guerra sem armas, engrenagem do processo civilizador assinalado pelos cientistas sociais Eric Dunning e Norbert Elias.
Tal percepção reconhece o ímpeto virulento da humanidade. Ele frequenta não só os genocídios, as escravidões, as crueldades históricas contra refugiados, mulheres, índios, pretos, pobres, homossexuais. Habita também as reuniões de condomínio, os assédios no trem e no escritório, as guilhotinas das redes, o fanatismo clubístico.
Provocações amistosas nutrem as interações entre torcedores, os seus vínculos tangíveis e intangíveis com o futebol. Modelam a experiência de acompanhar o clube do peito, tantas vezes próxima da devoção.
Certos dias a fronteira entre galhofa e agressão se dissipa, e a jocosidade transforma-se em violências materiais e imateriais. Das ofensas racistas nos estádios às pancadarias marcadas pela internet, assumem faces criminosas.
Muitas derivam de discriminações e desequilíbrios estruturais. Subvertem o papel agregador culturalmente atribuído ao esporte.
Algumas autoridades, como em São Paulo, tentam coibi-las com a torcida única. Indicam que não nos restaria outro remédio senão amputar a alma repentista da arquibancada.
O paliativo quase pegou a ponte aérea, depois das recentes brigas entre flamenguistas e vascaínos. Mas o Ministério Público do Rio julgou suficiente afastar as organizadas, sobre as quais recai, desde os anos 1960, um estigma bélico.
Nunca é simples assim. Há em jogo parâmetros morais, financeiros, políticos, culturais.
Restringir o espetáculo a uma torcida empena a alteridade vital às relações mediadas pelo futebol. O estádio a consagra numa apoteose de zoações recíprocas.
Mantê-las no perímetro da civilidade exige um pacto entre clubes, torcedores, gestores públicos e privados. Envolve aperfeiçoamentos educativos; preventivos, com táticas de inteligência aliadas à ciência de dados; fiscalizadores; punitivos: sanções esportivas e econômicas proporcionais à gravidade dos ataques físicos e verbais.
Fora a dificuldade de conciliar interesses diversos, esse pacote encara duas barreiras crônicas. Uma é a relativa tolerância a crimes ainda confundidos com o compasso carnavalesco da arquibancada, como coros homofóbicos. Precisamos separar as coisas, sem desvalorizar as liturgias que constituem o futebol e seus discípulos.
A outra barreira corresponde às precariedades da educação. Nenhum avanço social, democrático ou civilizatório, inclusive no universo esportivo, dispensa a prioridade de solucioná-las.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.