A vacina da democratização esportiva
Poder público, empresas e universidades deveriam se unir no fomento à atividade física regular
As cigarras resistem à realidade paralela. Imunes à banalização de absurdos e descasos, proclamam um amanhã solar. Lampejos em meio ao, como disse o papa Francisco, negacionismo suicida.
Oxalá muitos sóis atendam o canto e iluminem o pendor da consciência coletiva sobre interesses particulares, não raramente mesquinhos. Pois do senso coletivo emanam os esforços plurais para dirimir nossas desigualdades, inclusive em relação à prática esportiva – portanto, em relação à saúde.
As soluções esbarram em inépcias administrativas e desalinhos seculares, perpetrados na arquitetura sociocultural do Brasil escravocrata. Desequilíbrios perpetuados com a naturalização dos clientelismos e privilégios.
Nada surpreendem as tentativas de furar a fila da vacina. Refletem o cimento moral – individualista, segregador – que pavimenta a distribuição assimétrica de bens e serviços essenciais. Da água tratada, ainda indisponível a 35 milhões de brasileiros, à internet, deficiente ou inexistente em quase 30% dos domicílios. Da comida, escassa em pelo menos 7% dos lares, aos medicamentos, cujo acesso prolonga-se difícil para, em média, 80% da população.
Tamanhas precariedades habitam diagnósticos recorrentes do IBGE. Acentuadas pela pandemia, aprofundam o fosso da desigualdade. Nele chafurda a perda de quase 30% da renda dos mais pobres durante a crise sanitária, constatada pelo Centro de Pesquisas Sociais da FGV. A atrofia agrava-se com a inflação de 4,5% em 2020 (IPCA), impulsionada pelos alimentos (o leite, por exemplo, subiu quase 30%). A combinação encurta a distância entre comer mal e angustiar-se com o risco iminente de não comer. A angústia de não viver decentemente. De não viver.
Desequilíbrios assim corroem a saúde, a dignidade, o futuro. Corroem também os cofres públicos, sacrificados com a timidez dos investimentos em saúde preventiva. A prática regular de esportes, de atividade física, é uma das formas mais eficazes e baratas de conter as doenças crônicas, como diabetes e problemas cardiovasculares. Pouparia centenas de milhões ao SUS e às empresas públicas e privadas, cuja produtividade associa-se ao bem-estar de seus integrantes.
Um coquetel de crises (ética, financeira, política) dificulta as correções de rumo para a saúde e outras áreas. Tais correções extrapolam paliativos assistenciais e recalibragens econômicas à espera de reformas estruturais sob o balcão parlamentar. Envolvem uma coesão transpartidária e civil voltada a políticas públicas comprometidas com a superação das desigualdades.
Para desenvolvê-las, deve-se transpor a encruzilhada histórica observada por Edgar Morin. De um lado, desagregação, colapso de sensibilidade. Do outro, resiliência, empatia. Uma resiliência extraída da integração social, da revitalização de princípios e comportamentos humanitários, solidários. Neles se guia a bússola apontada pelo filósofo francês em “É hora de mudarmos a via: As lições do coronavírus”.
No caminho empático idealizado por Morin embarca o desejo, ou a necessidade, de uma efetiva política pública para a promoção e difusão da atividade física regular. Uma política de Estado, não de governo. Tão imprescindível à saúde dos mais de 200 milhões de brasileiros quanto a governança do SUS, o incentivo à pesquisa científica, a valorização dos profissionais do setor.
Incontáveis estudos atestam a influência decisiva do exercício regular para prevenir e controlar as principais ameaças à saúde, desde obesidade, diabetes e infarto até câncer e depressão. O hábito melhora a condição cardiorrespiratória, neuromuscular, metabólica, imunológica, psicológica – especialmente se acompanhado de alimentação equilibrada, sem excesso de açúcar, sal, alimentos processados e álcool.
Esse investimento no bem-estar desdobra-se em melhor performance profissional – maior competitividade – e na dispensa de tratamentos onerosos. Um alívio às contas públicas e privadas.
O sedentarismo causa cinco milhões de mortes por ano. Gera um custo global de US$ 54 bilhões (R$ 281 bilhões, aproximadamente) e uma perda de produtividade em torno dos US$ 14 bilhões (R$ 73 bilhões), estima a Organização Mundial da Saúde. Os impactos seriam evitados com 150 minutos semanais de atividade física moderada, o equivalente a meia hora por dia de caminhada, corrida leve ou pedalada, cinco vezes na semana.
Com um pouco mais de esforço, o benefício torna-se bem maior. Respeitados as condições biológicas de cada pessoa, e os respectivos estágios de condicionamento físico, o aumento da quantidade e da intensidade do exercício diminui significativamente o risco de doenças crônicas, ora chamadas de comorbidades. Cerca de 350 minutos semanais de atividade de média intensidade reduzem a mortalidade em 70%, constata um levantamento de Harvard publicado em 2017 na revista Circulation.
A pandemia reforça a premência de uma política pública ao encontro dessas diretrizes, preconizadas por organizações como a OMS e a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte. Uma política com ênfase na prevenção e no bem-estar sustentado, compatível com as responsabilidades orçamentária e fiscal, ajustada às regionalidades. A vocação geográfica e cultural do Rio para a atividade física, por exemplo, pode servir de trunfo a parcerias público-privadas.
“Fomentar práticas esportivas formais e informais” é dever estatal, determina o Artigo 217 da Constituição. Para contemplá-lo plenamente, como vetor a uma vida saudável e produtiva, é preciso ir além da coordenação entre as instâncias federal, estadual e municipal, além de engenharias econômicas e políticas.
A tarefa exige uma visão conjunta de que a norma constitucional corresponde à vacina mais em conta para a saúde da população. Uma visão estadista, empreendedora, capaz de enxergar os ganhos sociais e econômicos inerentes à difusão do hábito esportivo – nos centros urbanos, no campo, nos grotões. Uma visão capaz de alcançar o espírito agregador necessário à democratização da atividade física, para a qual devem convergir também empresas, universidades, associações comunitárias, ONGs.
Para Morin, a (re)construção do espírito cooperativo, espelhado numa regeneração política, é a saída à crise humanitária exacerbada pelo vírus. Encarar esse desafio, e vencê-lo, é passo inadiável para sanar nossas profundas desigualdades e melhorar a saúde de maneira ampla, geral, irrestrita.
O desafio apresenta-se tão retumbante quanto o canto das cigarras. Também ecoa a promessa de dias ensolarados.
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Bom gosto premiado
Pelé, Guga, Fittipaldi. A lista de craques apoiados pelo empresário Antônio Carlos de Almeida expõe o bom gosto – ou, diriam alguns, o olhar clínico – do maior mecenas do esporte brasileiro, falecido terça passada, aos 94 anos. Era sócio benemérito do Fluminense.
Acima das conquistas, várias delas históricas, os patrocínios do ex-presidente do Bradesco renderam camarotes cativos na memória afetiva brasileira. Nela se eterniza, por exemplo, o timaço da Atlântica Boavista composto por Renan, Bernard, Bernardinho, Badalhoca. Protagonizou, nos anos 80, duelos antológicos com a Pirelli, equipe paulista na qual jogavam outras feras da seleção. Um Rio x São Paulo delicioso de ver. Ali o vôlei engrenava a mudança de patamar. Ampliava a quantidade de fãs, praticantes, investidores. Configurava o salto aos pódios olímpicos.
Bom gosto também cerca a recuperação do Vasco ensaiada por Luxemburgo. Ao resgatar jovens talentos, como Talles Magno, Bruno Gomes, Juninho e Gabriel Pec, o treinador lembra que um time competitivo resulta não só do apuro tático, técnico, físico, psicológico, não só do encaixe das peças num todo harmônico e insinuante. Começa pelo gosto acertado na escolha do elenco, especialmente dos titulares.
Em princípio animadora, a opção por bons de bola revelados em São Januário não assegura, claro, um céu de brigadeiro na reta final do Brasileiro. Mas inspira a retomada do caminho pelo qual os grandes clubes alicerçaram suas principais glórias e suas identidades. Pelo qual produziram seus maiores craques e ídolos. Pelo qual se tornaram grandes. A formação, a valorização e a retenção de talentos têm, ou deveriam ter, um peso estratégico muito além da esperança de reparar rombos financeiros com vendas no mercado externo, tantas vezes prematuras. Reencontrar esses talentos é reencontrar a história, a grandeza, o encanto.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.