Puyet comia a bola quando resolveu parar. A decisão intrigou torcedores, colegas, jornalistas. Justificou-a com uma doída descoberta: perdera o prazer nos treinos. De que adiantava o corpo ainda obediente, se a alegria de jogar havia partido? Eduardo Galeano relembra o caso numa conversa com o amigo Eric Nepomuceno, entremeada ao longo do recém-lançado “Eduardo Galeano – Vagamundo”. A aposentadoria precoce do conterrâneo serviu de contraponto para o escritor reiterar a inabalada vitalidade no ofício: “Para mim, escrever é uma festa”. Assim seguiria hoje, aos 80, não fosse o estraga-prazeres de um câncer, lá se vão cinco anos. O espírito carioca jamais deixou de pulsar nesse uruguaio bom de papo.
A verve de Galeano colore o documentário dirigido por Felipe Nepomuceno, disponível no Now. Apreciações e histórias revisitadas se entrelaçam a leituras de pequenas grandes joias legadas pelo filho de Montevidéu. Mia Couto, Francisco Brennand, Ricardo Darín e outros bambas as iluminam. Compõem um farol dos mundos interligados num “mundo que confunde grandeza com grandão”.
Aclamado por expor “As veias abertas da América Latina”, obra-prima de 1971, Galeano vagou por territórios além da economia política. Mergulhou nas artérias do futebol com o apetite e a acuidade de quem devassava infernos latino-americanos. Para ele, o futebol também era uma festa. Uma festa frequentemente dividida com amigos brasileiros, várias vezes no Rio.
Eduardo Galeano enxergava como poucos as teatralidades do universo futebolístico. Elas revestem as deliciosas crônicas de “Futebol ao sol e à sombra”. Cativam até os menos chegados.
O sabor dos textos caminha nas minúcias, na porosidade aos diversos matizes do futebol – socioculturais, psicológicos, políticos, atléticos, simbólicos. Movido pela paixão do garoto que, como todo garoto, sonha ser jogador, e pela vocação da arte em atiçar percepções adormecidas, Galeano gravitava a órbita das chuteiras com o tônico da sua escrita:
“Escrevo para celebrar a realidade. Celebrando-a, denuncio tudo que impede que reconheçamos as múltiplas cores do arco-íris terrestre, de assombrosa formosura. Esse arco-íris tem sido mutilado por uma tradição, ainda vida, de racismo, machismo, elitismo, militarismo”, comenta com Nepomuceno, num dos trechos da conversa incorporada ao documentário.
Galeano deliciava-se com o colorido do futebol. Talvez porque lhe fosse mais vívido, como a pelota que reconhece o craque. Talvez porque alimentasse tanto a sua arqueologia literária pelo esporte quanto as habituais prosas com alma de boteco. Delas extraiu uma aquarela sobre personagens e liturgias que fazem o futebol ser o que é. Seria outra coisa sem a cumplicidade entre o torcedor e a arquibancada, descrita numa crônica sobre as eternas tardes de domingo:
“Quando termina a partida, o torcedor que não saiu da arquibancada, celebra sua vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora a sua derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. Então o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o torcedor se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval”.
O estádio era um dos micromundos nos quais o escritor garimpava a grandeza das coisas, resistência à atrofia das arbitrariedades, da soberba, do egoísmo. Micromundos nos quais colhia histórias contadas com simplicidade, cadência e afeto. Mesmo um estádio vazio não se cala, dizia Galeano. Ecoa as cicatrizes que o tornam vivo:
“Não há nada menos vazio do que um estádio vazio. Não há nada menos mudo que as arquibancadas sem ninguém. Em Wembley, ainda soa a gritaria do Mundial de 66, que a Inglaterra ganhou, mas aguçando o ouvido você pode escutar gemidos que vêm de 53 quando os húngaros golearam a seleção inglesa. O Maracanã continua chorando a derrota brasileira no Mundial de 50. Na Bombonera de Buenos Aires trepidam tambores de há meio século”.
Galeano estava certíssimo. Não fossem os DJs de ocasião, ouviríamos o Maracanã emudecido ecoar a charanga rubro-negra de Jaime de Carvalho; o delírio da geral no gol de Pelé sobre o Paraguai, em 1969, largada para o tri; os pedidos de choro do mate com mais espuma do que líquido; a explosão alvinegra com o arremate decisivo de Maurício em 1989, quebrando o jejum de 21 anos; os gritos que uniram Vasco, Flamengo, Fluminense e Botafogo ao Bangu em busca do Brasileiro de 1985, escorrido nos pênaltis; a euforia da meninada com o Noel trazido de helicóptero no meio do dia; o aplauso da lua ao saque estratosférico de Bernard, desconcertando a máquina soviética de 1983; a injúria do Sobrenatural de Almeida diante da fatídica derrota tricolor na final da Libertadores; o estalo do Beijoqueiro em Sinatra; a tietagem da galera com Paul, Jagger, Ivete, Sting; o coro político misturado aos acordes eloquentes de Rogers Waters, numa inesquecível noite chuvosa de 2018. E por aí vai.
Os ecos estão lá. Há que ouvi-los com o peito. Latejantes. Cartografias do vivido e do não vivido. Sinais de que os 70 anos do Maraca não são uma data. São histórias. São vozes carregadas por olhares, abraços, pulos, provocações, memórias, silêncios, todas reunidas numa garganta de eus transformados em nós. São cicatrizes. Redimem um pedaço do vazio instalado pelo vírus.
Ouvir esses ecos é uma inspiração contra a surdez à espreita. Saber escutar, lembra o escritor, nos leva ao melhor da vida:
“O melhor que cada pessoa tem está na quantidade de pessoas que cada pessoa contém. Porque todos somos muitos, todos contemos uma multidão dentro. Isso não é um defeito, é uma virtude. Tem que saber escutar essas vozes de dentro, dentro de cada um e dos outros. Para não sermos mudos, é preciso não sermos surdos, escutarmos as vozes, inclusive aquelas com as quais não concordamos, as que gostamos e as que não gostamos”, ponderou ao amigo e tradutor.
As múltiplas vozes da arquibancada andam fazendo falta. Mais falta faz a pulsação multicolor de Eduardo Galeano.
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Alexandre Carauta é jornalista, mestre em Gestão, doutor em Comunicação, graduado também em Educação Física.