Baixada a poeira da pandemia, é tempo de ressuscitar os pequenos grandes prazeres no ar livre. Reencontrar a saúde e os amigos, o ânimo e os afetos.
Caminhar na Quinta, no Jardim Botânico, ao redor do Maraca. Pedalar na orla, Lagoa, Paineiras. Passarinhar que nem exilado de volta à casa. Flanar igual Moacyr Luz em “Saudades da Guanabara”.
Baixada a poeira, é tempo de recuperar doces refúgios, como o Cacique de Ramos cantado pelo poeta. Regaços nos quais a “vida flutua num sonho real”. (Viva Luiz Carlos da Vila!)
Tempo de reviver a calçada, a bola de gude, a pipa, o rolimã. Tempo de skate, beach tênis, futevôlei. De surfe, stand-up, canoagem.
De ioga no Parque Lage.
É tempo do cheiro da grama, da brisa costeira, da roda de prosa. Tempo de mexer a alma e o esqueleto sob o céu macio do outono.
A (re)construção de hábitos esportivos abriga três vitórias simbólicas. Sobre o danado do vírus, com o qual teremos de conviver por uma eternidade. Sobre o beco da inércia, para o qual nos induzem traumas e perdas das crises sanitária, econômica, ética. Sobre o destino traçado por deslizes como sedentarismo, alimentação inadequada, estresse crônico, consumo excessivo de álcool.
Em alta nos últimos dois anos, esses traços da correria moderna associam-se a sete em cada dez mortes no mundo. Já a prática esportiva – frequente, corretamente prescrita e orientada – reduz muito o risco às principais doenças, desde diabetes, infarto e câncer até os crescentes transtornos emocionais.
O esporte logicamente não amortiza os horrores da pandemia, da inflação, das guerras, da desigualdade, do descaso. Mas pavimenta a ponte até uma vida saudável, longa, melhor. Constitui também um respiro às asfixias de plantão.
Controlada a urgência sanitária, é hora de o poder público amadurecer a garantia constitucional à atividade física regular.
Hora de facilitá-la, de ampliá-la, numa política de saúde preventiva, direcionada prioritariamente à população pobre.
O primeiro passo é incorporá-la às prioridades estatais. Revela-se quase tão gritante quanto retirar da sub-humanidade os 35 milhões de brasileiros sem água tratada e resgatar da fome os 20 milhões para os quais uma refeição diária seria um milagre de Páscoa.
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Inspiração colombiana
Levado por um acidente de carro, aos 55 anos, Freddy Rincón brilhou como um dos bem-sucedidos volantes improvisados. Meia-atacante de origem, endiabrado, era o Colosso dos conterrâneos colombianos. Assim colecionou vitórias no Palmeiras, Nápoli, Real Madrid.
Recuado a volante no Corinthians de Luxemburgo, campeão mundial em 2000, Rincón atestou aquilo que até treinador de campeonato marciano já teria aprendido: habilidade e marcação caminham juntas. Não se configuram incompatíveis.
Todo jogador de meio-campo – todo jogador profissional – precisa marcar e criar com siamesa competência. Independe da tática. Rincón aplicava com maestria essa versatilidade. Ela distingue o escrete envolvente do ordinário, ainda refém dos cães de guarda.
Mazinho, ex-Vasco, campeão na Copa de 1994, e Gerson, ex-Fla, são outros talentos deslocados àquele papel. A lista é extensa. Não falta inspiração para os grandes clubes formarem e prestigiarem mais volantes deste tipo, em vez do obsoleto cabeça de área.
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Parelhos
Dez entre dez analistas apontam a Série B de Grêmio, Bahia, Vasco e Cruzeiro como a melhor ou a mais difícil de todos os tempos.
É provável que o prognóstico se confirme.
A divisão principal insinua-se igualmente ou mais competitiva. Talvez a mais competitiva do planeta.
Os participantes indicam proximidades técnicas, táticas, físicas. Até aos bichos-papões Flamengo, Palmeiras e Atlético-MG, convém deixar as barbas de molho.
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Se a moda pega…
A crônica esportiva aturdiu-se nesta semana com a barração de jornalistas do UOL na Vila Belmiro. A direção do clube praiano os proibiu de cobrir o confronto entre Santos e Universidad de Quito, quarta passada, pela Sul-Americana.
A sanção repudiava críticas de Juca Kfouri, colaborador do mesmo portal, à estreia do Santos no Brasileiro, um desbotado zero a zero contra o Fluminense, no Maracanã. A ineficiência do time levou o colunista a chamá-lo de “Ninguém FC”.
Para o presidente santista, Andrés Rueda, a ironia caracteriza um ”desrespeito à instituição”. Argumentou que a suposta afronta justificava o veto aos repórteres, pelo menos enquanto o UOL não discordasse formalmente de Juca. Rueda não considera a proibição uma censura, tampouco uma barreira à liberdade de imprensa.
O caso sinaliza derrapagens na democracia, no profissionalismo, na comunicação. Legítimas divergências sobre opiniões emitidas na imprensa deveriam irrigar o debate, enriquecer reflexões. Se constatada uma ofensa, poderiam reivindicar retratação e punição legalmente prevista. Jamais deveriam dificultar o trabalho jornalístico, centrado na responsabilidade de apurar, relatar, contextualizar, esclarecer os fatos.
Imperfeito como qualquer atividade profissional, o jornalismo exige aperfeiçoamentos sistemáticos. Demanda um compromisso constante com a correção. Falhas não desqualificam sua abertura ao contraditório e à pluralidade, primordiais para o avanço democrático.
Cercear o jornalismo é cercear o pensamento crítico, o diálogo, a transparência. Indispensáveis à democracia, tais atributos andam bem valorizados no mundo corporativo. Gestões e estratégias de comunicação inclinam-se cada vez mais à governança e à responsabilidade socioambiental (ESG, na sigla em inglês).
Nossa indústria do futebol já haveria de ter aprimorado formas de equacionar discordâncias e contrariedades. De preferência, transformando-as em aprendizado.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.