Elas invadem dezembro como as cartas ao Noel e as passas no arroz. Alastram-se que nem nuvem radioativa. Comicham insistentes, até nos entregarmos à tentação de elaborá-las com a caligrafia ilusória de uma verdade absoluta.
Resoluções, hits do Tik Tok, personalidades, piores gafes, melhores séries. Listas brotam de todo canto, todo feitio. Viram compulsão.
Muitos as aproximam da solenidade, como se pautassem uma conferência da ONU sobre urgências climáticas ou conflitos no Oriente Médio. Nelas enxergam a cartografia de um oráculo.
Outros compreendem que se equivalem a um despretensioso pingue-pongue numa tarde vadia de verão. Viessem com manual de sobrevivência, seria a primeira recomendação: modere o uso, não as leve tão a sério.
Alguns desdenham, dissimulam, mas delas não se esquivam. Listas desconhecem a indiferença e, sobretudo, a unanimidade. Eis a graça.
Sua natureza excludente atiça polêmicas. Anima resenhas, mesas-redondas, reuniões familiares.
Quando os primos ensaiam, enfim, soterrar a esgrima política e devolver a paz à ceia, lá vem uma lista reacender a discórdia. Nenhuma evidência científica garante consenso, muito menos a curadorias do tipo “maiores jogadas de Pelé” ou “seleção do campeonato”.
Tomemos os exemplos de Arias, Cano, campeões continentais, e Tiquinho, estrela botafoguense em 2023. Arrebentaram na maior parte da temporada. Foram frequentemente decisivos.
Seriam titulares em quase todas as equipes da elite nacional. Não figuram, contudo, nas seleções do Brasileiro carimbadas por analistas profissionais. Miopia coletiva? Claro que não.
Acabaram desbancados pela dupla dinâmica Hulk e Paulinho, do Galo; pelo prodígio Endrick, estopim do 12º título palmeirense; e pelo craque Suárez, cujos ombros carregam o vice-campeonato do Grêmio. Fora o talento e os números soberanos, o quarteto enverga a competência de arrancar na hora certa.
Escolhas perfeitas, cartesianamente perfeitas, até uma voz tinhosa incendiar o parquinho: “Quer dizer que o Cano, aquela máquina de gols, artilheiro da Liberta, vai ficar de fora?”, provoca o tricolor, enquanto compra banana na feira.
Mesmo chamuscado pela reviravolta hollywoodiana, o botafoguense da barraca ao lado costura o orgulho, estufa o peito doído e emenda: “Até ontem Tiquinho era o rei do campeonato. Agora não presta mais? Nenhum centroavante jogou mais do que Tiquinho neste ano”.
O argumento, insuficiente para cicatrizar o desgosto alvinegro, parece sólido o bastante para despertar controvérsias sobre o Oscar de Camisa 9 na temporada. Nem com o auxílio das planilhas, estatísticas, inteligências artificiais, seria possível contorná-las.
O céu e o inferno das listas encontram-se justamente na ambiguidade intrínseca, no pacto com subjetividades e memórias afetivas. “Todo mundo tem a sua seleção. Eu também tenho a minha”, ironizou João Saldanha, pedagógico, ao anunciar as feras do escrete brasileiro de 1969, prelúdio do tri mundial.
Listas só deixarão de ser diabolicamente furtivas, manhosamente inflamáveis, no dia da concórdia universal quanto aos dez melhores sucessos dos Beatles. Até lá, estaremos condenados à brincadeira de esboçá-las, compará-las, discuti-las, de nelas escavar sonhos e lembranças, sem cairmos na asneira de atribuir-lhes peso superior ao de um passatempo.
Espírito assim moveu os jornalistas e professores da PUC-Rio Creso Soares Jr. e Mauro Silveira a aceitarem a pilha de listar músicas que embalassem seis golaços memoráveis, também por eles escolhidos. Mestres no universo do futebol, os autores do artigo “Mesas-redondas: transformações no ritmo da globalização e da interatividade” não tardaram a fazer bonito:
* Pelé (Brasil), contra a Suécia, na final da Copa de 1958: o inesquecível chapéu, cartão de visitas do Rei.
“Chega de saudade”, de Tom Jobim, imortalizada por João Gilberto.
* Rivellino (Fluminense), contra o Vasco, no Carioca de 1975: elástico antológico.
“Brasil pandeiro”, dos Novos Baianos.
*Roberto Dinamite (Vasco), contra o Botafogo, no Carioca de 1977: lençol e arremate explosivo.
“Jardins da Babilônia”, de Rita Lee.
*Zico (Flamengo), contra o Fluminense, no Carioca de 1985: falta no ângulo.
“Brasil, mostra a tua cara!”, de Cazuza.
*Maradona (Argentina), contra a Inglaterra, na Copa de 1986: fileira de dribles, incluindo o goleiro.
“Inverno portenho”, de Astor Piazzolla.
* Denner (Portuguesa), contra o Santos, no Paulista de 1993: ninguém segura o garoto.
“Olha o menino”, de Jorge Ben Jor, também cantada por Caetano.
As rimas orquestradas por Mauro Silveira e Soares Jr. abrem-se às infinitas tabelinhas entre música e futebol. Cada um de nós pode sugerir gols e canções não menos marcantes, não menos afinados. Está feito o convite.
Listas engaioladas nada valem, nada inspiram. Cedo ou tarde, percebemos que nascem para voar.
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Barbada
O pedido de casamento feito por Lucas Mozela no Parapan de Santiago, há um mês, é uma barbada entre os momentos mais emocionantes do esporte em 2023. Acima dos três ouros e do bronze conquistados, o nadador faturou o “sim” da namorada Gislaine. A galera no parque aquático, claro, aplaudiu de pé.
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Colecionador de listas
Por falar ainda em listas, poucos as veneravam tanto quanto o saudoso Lula Branco Martins. O ex-editor da Veja Rio e do Jornal do Brasil adorava prepará-las, dourá-las com a inesgotável criatividade.
Canções imbatíveis do Paul e do Chico, sambas-enredo históricos, gols inusitados, manias cariocas, programas inestimáveis, filmes desconcertantes. Matutava uma atrás da outra com a ajuda dos amigos, deliciosamente enfileiradas nos 30 anos pelas redações da cidade.
Lula era um colecionador de listas. Nunca cultivou a pretensão de torná-las unânimes, imperiosas, indiscutíveis. Ao contrário, mirava o diálogo, a divergência, a troca, senão a vida perde o sentido.
Só o xodó pelo América mantinha-se cativo, inquestionável. Incondicional como todo amor deve ser.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.