Flu e Boca no Maraca, o jogo que já começou
Enquanto tricolores flutuam insones de ansiedade, a finalíssima da Libertadores já atiça o turismo, o comércio, as resenhas, as bolas de cristal
As trombetas rugem, os corações tremem, a cidade e as bolas de cristal se atiçam. Tricolores flutuam insones de ansiedade, clamam a João de Deus o paraíso vislumbrado. O 4 de novembro, dia que nunca chega, ronda-lhes a cuca como uma fixação adolescente. Mergulham no Maraca explodindo de gente, de cores, de som e fúria.
Esse Flu x Boca configura-se antes do nada, diria Nelson Rodrigues. Vaga no tempo das coisas oníricas.
A disputa do trono continental escala a História e as nuvens. Sua dimensão épica transcende a órbita esportiva. Ramifica-se em impactos de natureza e calibres variados.
Ao futebol, a decisão oferece o alumbre dionisíaco de um Brasil x Argentina, intenso até no bafo-bafo. Duelo ora envernizado pelo antagonismo entre a solidez defensiva da equipe portenha, competitiva até os ossos, e o toque envolvente do time carioca. Entre a densidade das seis Libertadores conquistadas e o apetite obstinado pelo título inédito. Entre a formiga pragmática e a virtuosa cigarra.
Ao Maracanã, a finalíssima constitui um par perfeito. Dos dirigentes e patrocinadores aos atletas e treinadores, das torcidas endiabradas aos quero-queros rasantes, ninguém imagina lugar melhor para um jogo assim. Perfeição carnavalizada de verde, grená, branco, azul, amarelo.
Nenhum outro estádio coleciona tantos momentos enfeitiçados, irmana tantos anjos e demônios, irradia tantas epifanias e tantos dramas inesquecíveis. Nenhum outro acolhe, com a generosidade materna de um quintal, tantos enredos desconcertantes, desses que assombram os vivos e os mortos, paralisam as horas e a respiração, estremecem as certezas e o concreto.
As finais de Copa, a magia de Garrincha, o balão de Dinamite, o elástico de Rivellino, as pinturas de Zico, os clássicos de domingo. O delírio anárquico da geral, as viradas antológicas, os heróis e vilões improváveis, os gols de placa, os gols bizarros, os gols cardíacos no último minuto, o milésimo de Pelé. A voz de Sinatra, os embalos de Roberto Carlos, Madonna, McCartney, Stones, a Jornada de Bernard.
Flu x Boca junta-se às preciosidades inestimáveis do Maraca. Já nasce imortal. Até por isso, merecia o cortejo popular, estrangulado pela elitização da arquibancada.
À Confederação Sul-Americana, o confronto avaliza uma bolada. Só em direitos de transmissão, o torneio rende mais de R$ 2 bilhões. Grana compatível à audiência estimada da final: 15 milhões de espectadores, em canais abertos, fechados, de streaming.
Ao clube centenário fundado por Oscar Cox, clube do mestre Cartola e de tantos outros bambas, o epílogo do sonho agrega R$ 36 milhões. Se for campeão, o Flu receberá R$ 94 milhões. Alívio para dívidas e orçamentos. Salto a investimentos, receitas e ambições maiores, impulsionados pelo acesso a competições como os Mundiais de clubes deste ano e de 2025, a Recopa Sul-Americana e a própria Libertadores.
Ao Rio, o tira-teima entrega dividendos econômicos e socioculturais. Movimenta o turismo, o comércio, as resenhas. No compasso da irreverência, tricolores e secadores rivalizam palpites e provocações.
Àqueles unidos pelo “sentimento nascido em Laranjeiras”, a peleja decisiva sopra a cumplicidade dos deuses, a apoteose redentora, a libertação da êxtase represada no peito. O derradeiro capítulo inflama a fé professada no incansável mantra: “Vamos, tricolores, chegou a hora…”, conclamam os devotos. Em tom de prece, rogam uma ordem.
Se o escrete de Fernando Diniz cumpri-la, o sábado idealizado os entorpecerá numa pororoca de felicidade, orgulho, alívio, exaltação, a sorte do bilhete premiado, da paixão correspondida. Aí então, loucos da cabeça, guardarão a noite estrelada como quem guarda eternamente no rosto o primeiro beijo.
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Salve, Cartola!
Agenor de Oliveira completaria 115 anos neste 11 de outubro. Teria chegado ao mundo tricolor, dizem. Consumou o amor pelo clube vizinho ainda garoto, vidrado nos treinos do time tricampeão carioca em 1917/18/19.
Tempos depois, Cartola dedilhou o coração verde, vermelho e branco no morro onde fundaria a icônica escola de samba. A Mangueira, conta a lenda, envergaria as cores do Fluminense, não fosse um incidente que desbotara o grená.
O craque da música é homenageado pelo clube com uma nova camisa. Mangas e gola em rosa, ela estampa a letra de “Corra e olha o céu”, uma das joias do poeta, composta em 1974. O refrão inspira a esperança, ora concentrada na final da Liberta:
“Ai, corra e olha o céu
Que o Sol vem trazer
Bom dia”
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.