Conciliação. A doce palavra vira clamor. Oxigênio a relações e futuros estrangulados por intransigências, idiotices, carências civilizatórias.
Esforços conciliatórios revelam-se tão impreteríveis quanto desafiadores. Aplicam-se ao universo esportivo.
Nunca são fáceis os consensos entre a vaidade e o altruísmo; o particular e o coletivo; a ambição econômica e a justiça social; o colorido democrático e a cobiça política; as certezas próprias e alheias. Equilíbrios especialmente difíceis em meio à banalização extremista.
Adensada pelos egoísmos de plantão, a neblina maniqueísta turva o inadiável reencontro com a ponderação, o senso comunitário, a delicadeza. Atributos sem os quais o diferente vira inimigo, em vez de alavanca ao aprendizado e ao desenvolvimento.
A tarefa impõe-se também às dimensões esportivas, radiografadas por pesquisadores como o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) e Manoel Tubino (1939-2008), ex-presidente da Federação Internacional de Educação Física. As crescentes exigências de responsabilidade socioambiental acentuam a necessidade de conciliar aspirações industriais, sociais, culturais, mediáticas, educacionais. Tais como:
- Entre a democratização da prática esportiva e o desenvolvimento de uma política de Estado voltada ao bem-estar prolongado, à prevenção de doenças, na qual o esporte se torne uma das estratégias prioritárias para melhorar a saúde, sobretudo dos mais vulneráveis.
- Entre as ginásticas orçamentárias e a ampliação do esporte adaptado em escolas, praças, praias e outros espaços públicos, sem a qual se atrofiam os benefícios para a inclusão social, a saúde, a formação de craques.
- Entre os princípios ESG louvados por regentes esportivos e as condutas de vários deles. Se a prática seguisse o discurso, beirariam o impossível casos como o aval ao anfitrião da Copa 2022. Diante de abusos contra direitos humanos no Catar, denunciados por organizações como Human Rights Watch e Anistia Internacional, prevaleceu o pragmatismo econômico e político.
- Entre o talento de crianças e jovens de favelas, periferias, grotões, e as condições materiais e imateriais para florescê-lo. Os títulos mundiais da ginasta Rebeca Andrade e da skatista Rayssa Leal, por exemplo, indicam o tamanho do amanhã que podemos produzir.
- Entre a urgência de banir dos estádios todas as formas de discriminação e o amadurecimento das táticas de educação, fiscalização e punição, ainda limitadas ao verniz paliativo.
- Entre os jogos e esportes de povos indígenas e uma valorização correspondente à sua riqueza cultural, corporal, humanitária.
- Entre o protagonismo de grandes clubes e jogadores no mercado do futebol brasileiro e o poder decisório em torno das principais competições (propriedades) e dos rumos políticos e econômicos do setor. Envolve mais do que a implantação de uma liga inspirada nas primas ricas europeias e americanas.
- Entre o pacto coletivo indispensável ao sucesso de ligas deste tipo e as ambições particulares. Seus integrantes precisam trocar o figurino de rivais pelo de sócios. A dificuldade manifesta-se, por exemplo, no complexo reparte da grana atrelada aos direitos de transmissão.
- Entre a guinada para Sociedade Anônima (SAF), adotada por vários clubes brasileiros como bote para a salvação do naufrágio financeiro, e as tradições e autonomias sem as quais suas identidades – inclusive de marca – e suas densidades históricas perigam desbotar.
- Entre as memórias do esporte brasileiro, retratos da diversidade e dos contrastes nacionais, e os recortes da ordem econômica-midiática.
- Entre as demandas comerciais das disputas hipermidiáticas concentradas na elite da bola; as necessidades de treinos e de recuperação física dos atletas; a redução da ociosidade em parte do ano ainda sofrida pela periferia do futebol profissional no país. Essas convergências formariam um calendário mais equilibrado e justo.
- Entre a lógica do consumo e o alinhamento da indústria esportiva a modelos de negócios e de cidades sustentáveis, em compasso com as emergências climáticas e ambientais.
A dúzia sugestões para a agenda 2023 contempla gestões privadas e públicas. Ela começa agora. Não adianta esperar o Papai Noel.
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Transformação F.C.
Ronaldo conciliava orgulho, entusiasmo e prudência, ao agradecer o prêmio Homem do Ano (categoria Ícone), da revista GQ, quinta-feira passada. A ressurreição azul lhe amansa a fala, não o espírito. Sabe que as glórias de atacante fenomenal, somadas às lições empresariais, não asseguram sucesso equivalente na carreira executiva. “Há muito por fazer”, reconhece o dono da Raposa, com fome de artilheiro.
Não menos empreendedor tem sido o skatista Ademar Lucas, o Luquinhas, outro premiado da noite no Copa. Por meio do Instituto Ademafia, criado há dois anos, ele coordena aulas gratuitas de skate para crianças pobres e ações solidárias para moradores do Morro Santo Amaro e outras comunidades cariocas. Converte pluralidade em mobilizações transformadoras.
Luquinhas também sabe que há muito, muito por fazer. Caminho longo. O passo – conjunto – corresponde à extensão e à estatura das nossas (re)conciliações.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.