A importância dos trabalhos de formiga contra preconceitos
Combate a discriminações estruturais conjuga batalhas miúdas, como as da jogadora Formiga, com a força do ativismo digital, assim como as de LeBron James
Ele nasceu preto e pobre. Cresceu num país convulsionado pelo racismo, contra o qual se tornaria uma voz eloquente amplificada nas redes digitais. Favorecido pelas condições educacional e biológica, fez história e fortuna. Venceu também a timidez para virar expoente de um esporte popular nas esquinas, nas escolas, na mídia.
Prestes a completar 37 anos, LeBron James acumula recordes, conquistas, fãs e muita grana. O tetracampeão da NBA e bicampeão olímpico (Pequim 2008 e Londres 2012) soma 117 milhões de interações online. Impulsionam os US$ 600 milhões faturados pelo astro do basquete fora das quadras. Sua jogada mais preciosa é converter tudo isso em ressonância do combate contra preconceitos estruturais.
A militância envolve desde o apoio a movimentos como Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) até broncas prosaicas. A mais recente culminou na retirada de um casal do ginásio em que duelavam o anfitrião Pacers e o Lakers de LeBron. Ofensas ao filho do jogador teriam causado a expulsão da dupla de torcedores à beira da quadra.
O caso acabou ofuscado pela acirrada vitória dos Lakers, na prorrogação: 124 a 119, com 39 pontos do craque. Descontados os excessos, o episódio reforça a necessária conscientização da diferença entre o sagrado direito de torcer, extravasar emoções numa catarse tribal, e sua inaceitável conversão em licença para ofender, discriminar, agredir. Aprendizado nada fácil.
Ela nasceu preta e pobre. Cresceu num país racista, machista, homofóbico. Venceu discriminações e precariedades materiais até tornar-se expoente do esporte mais popular. Não dispôs de estrutura escolar para ajudá-la a florescer o talento.
Superou a marcação de irmãos e vizinhos incomodados com a insistência da garotinha em se intrometer no domínio masculino. Um aperitivo das retrancas que sofreria desde as pelejas na terra da periferia de Salvador até o sucesso com a Canarinho.
Vestida de persistência, Formiga fez história. Fosse conterrânea de LeBron, também teria encontrado fortuna, visibilidade e prestígio proporcionais aos feitos esportivos.
Aos 46 anos, é a única alma viva a ter disputado sete Copas e sete Olimpíadas. Ninguém suou tantas vezes e por tanto tempo a seleção. Estreou adolescente, aos 16, como Pelé. Colecionou 237 jogos, mais que o dobro em relação ao Rei. Faturou duas medalhas olímpicas (2004 e 2008), o vice mundial em 2007, três títulos pan-americanos.
Despediu-se nos 6 a 1 sobre a Índia, quarta passada, em Manaus. Das homenagens, sobressaíram as simbólicas flores recebidas de Marta, o coro da torcida e, claro, a inédita corujice da mãe na arquibancada. Enfim Celeste via de perto a filha Miraildes Mota em ação.
O jeito simples e discreto engana. Camufla um protagonismo feito não de gols e dribles geniais, como os de Marta, mas de fibra, eficiência comezinha, regularidade. Então a incansável Miraildes logo virou Formiga. É uma tranquilidade jogar ao lado dela, repetiam colegas de sucessivas gerações.
O estilo manifesta-se noutra semelhança com LeBron: ativismo social. Sem os holofotes e a eloquência midiática do americano, a filha de Celeste tonifica pequenas grandes batalhas contra o racismo, o machismo, o desdém ao futebol feminino, segregações naturalizadas no Brasil da desigualdade visceral. Trabalho de formiga.
O temperamento e o peso socioeconômico, fora nosso estágio civilizatório, não lhe concederam expulsar um racista atormentando os ouvidos e a dignidade. Nem por isso deixou barato os gritos de “macaca” enfileirados da várzea a estádios europeus. Combateu-os com equilíbrio, abnegação e paciência à altura do nome.
Batalhas assim são vencidas pouco a pouco. Dependem menos dos amplificadores online, frequentemente distorcidos e surdos, do que de minúsculos milagres esculpidos na empatia, na perseverança, na educação. Milagres cotidianos, imperceptíveis, como a mãe que embala, contra o destino da pobreza e do machismo, o sonho da menina em bater um bolão.
O desafio dessas revoluções miúdas evidencia-se, por exemplo, no pano quente sobre as ofensas racistas proferidas por dirigente do Brusque contra o meia Celsinho, do Londrina, quando os times se confrontaram em agosto, pela Série B. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva retirou, mês passado, a pena de três pontos aplicada inicialmente ao clube catarinense.
Dos sete auditores no julgamento, só dois discordaram de que bastariam perda do mando de campo e multa de R$ 60 mil. O retrocesso é emblemático. Indica a importância e o chão a percorrer dos trabalhos de formiga contra preconceitos sistêmicos.
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Muita calma nessa hora
A galera de volta liberta a alma reprimida por intermináveis meses de exílio. Arquibancada é lar de cores e sons, abraços e tensões. Mas a beleza da volta pra casa não se impõe aos fatos. Não dispensa cuidados sanitários em meio à pandemia que, embora mais perto do controle, ainda se move e insinua recrudescer em vários países.
Apoiada em fiscalizações frouxas e na ilusão da página virada, a aglomeração de torcedores sem máscaras é uma unanimidade país afora. Nela mergulham o Mineirão dos atleticanos em contagem regressiva para o caneco; e o Maracanã dos rubro-negros radiantes com o gol sobre o Corinthians no último minuto. Repetiu-se no show dos tricolores diante da vitória sobre o Inter e a perspectiva da Libertadores. Só falta combinar com o vírus.
Sem menosprezar os avanços derivados da vacinação, a unanimidade revela-se precipitada e perigosa. Na dúvida, chamemos o VAR da ciência. Esse não falha.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.