Luz aos garrinchas do morro, do asfalto, dos nossos corações
Endiabrados, irreverentes, redentores, eles revigoram a rima entre o moleque a bola esmiuçada por Chico Buarque: entrelace essencial ao futebol e à vida
“Acabou a nossa essência: campinho de terra, improvisação, golzinho. É só nutelinha de campo sintético, é selfie, é celular 24 horas. Parou [de se ver] aqueles meninos correndo atrás de uma bola o dia inteiro. Isso fazia a diferença”, aflige-se o presidente do Atlético-GO, Adson Batista, desgostoso com perebas aspirantes a profissionais. Sinal dos tempos, concordam muitos por aí.
Extraído de uma entrevista à Rádio Bandeirantes de Goiânia, o lamento ganha as redes com a força de uma verdade coletiva. Expressa o fosso entre o Brasil idealizado e a realidade refletida no jejum de Copas.
A nostalgia do dirigente desperta uma identificação compulsória inclusive nos que não vivenciaram os tempos áureos de Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Gérson, Rivellino, Zico. O sonho de revivê-los martela os corações com a sede de um náufrago.
Sede de arte. Sede de encanto. Alívios às dores do mundo, cantam pedagogicamente os Titãs. O futebol verde-amarelo acostumou-nos a essa dimensão etérea, indispensável, na qual ventila a infância e o espírito revigora-se dos horrores humanos.
Acima dos três canecos mundiais, do cartaz planetário e da hegemonia nos gramados, a sucessão de cobras entre as décadas de 1950 e 1980 aproximou-nos da fantasia. Forjou nossa identidade cultural, envernizou nosso orgulho. O Brasil bom no samba e bom no couro, simboliza a nação imaginada: moderna, autêntica, imbatível.
Por isso esperamos reaver nosso futebol não com a paciência de quem cogita avistar um cometa ou do poeta que matuta o beijo da palavra. Esperamos com a urgência de quem pesca oxigênio, com a inquietação de um desmemoriado em busca de si mesmo. Esperamos como netos ansiosos pelo mingau d’avó, debruçados sobre a certeza de que logo os anjos concederão uma mágica natalina comparável à de George Bailey no eterno “A felicidade não se compra” (1946), de Frank Capra.
Inquietude idêntica, camarelizada de saudade, move o desabafo de um amigo na internet: “O que houve com as bolas de futebol (como nós as conhecemos)? Elas encolheram. Deprimente”. Refere-se tanto ao tamanho quanto à estatura sociocultural das pelotas que enfeitiçam as pernas e as mantêm infinitamente juvenis.
Desde as folclóricas versões de meia até a icônica dente de leite, rainha dos rala-cocos, desde a cobiçada Número Cinco, que o sebo amaciava, até as dotadas de tecnologia cibernética, bolas de futebol sempre foram mais do que bolas de futebol. Ao primeiro quique, ativam o recanto lúdico anestesiado pela pressa cotidiana.
Por trás das grifes, dos grafismos, dos atributos técnicos, prevalece a alma de chapinha. Nela baila a matriz dionisíaca do nosso futebol.
A chapinha disputada pelo enxame de pés no pátio do recreio desintegra qualquer dúvida sobre a intensidade futebolística na aquarela nacional. Reluz menos na matemática dos campões e das pranchetas do que na poesia das peladas em chão de terra, na erupção do drible. Assim lembra Chico Buarque na deliciosa crônica “O moleque e a bola”, publicada em junho de 1998 (O Globo/Estado):
“O que conta mesmo é a bola e o moleque, o moleque e a bola, e por bola pode se entender um coco, uma laranja ou um ovo, pois já vi fazer embaixada com ovo. (…) Mas se a bola de futebol pode ser considerada a sublimação do coco, ou a reabilitação do ovo, ou uma laranja em êxtase, para o peladeiro o campo oficial às vezes não passa de um retângulo chato”.
Ora, os dias são outros, a fila anda, diriam os cartesianos aos últimos românticos. A lógica instrumental e mercantil impõe-se soberana no universo das chuteiras, argumentariam.
Povoadas de craques estrangeiros, equipes europeias viram seleções. Com atletas de carreira internacional e táticas globalizadas, seleções planificam-se. Abrasileiradas, disciplinadas, competitivas.
Abismos econômicos acentuam a nossa liderança na exportação de talentos. Quase mil deles rumaram, em 2022, para times europeus, asiáticos, árabes, norte-americanos, contabiliza o Relatório Global de Transferências, divulgado anualmente pela Fifa (o referente a 2023 sai agora em janeiro).
Sob o assédio constante dos primos ricos, a sangria de jovens bambas, várias vezes precoce, expõe uma dificuldade crônica de retê-los. Revela também a metade cheia do copo: o moleque e a bola continuam rimando, recíprocos.
Poses para arquibancadas virtuais, culto à exposição, ascensão da grama sintética, nenhuma mania contemporânea esgarça o entrelace entre o moleque e a bola a ponto de descosturá-lo. Ou a vida ficaria condenada à chatice.
Enquanto a embaixadinha caminhar irresistível que nem uma coceira, o moleque de todos nós seguirá inebriado pela bola, e vice-versa. Pois a bola – em inúmeras feições – o faz flutuar sobre o peso das horas. A bola o enternece igual uma cantiga de roda, a bola o transporta à galáxia dos super-heróis.
Garrincha nasceu deste milagre brejeiro. Na carona de suas asas sorridentes, nos banhamos ao sol do espontâneo, da liberdade, da leveza. Brincamos de pique com o impossível. Reencontramos o gosto da simplicidade.
O verdadeiro milagre não foi o Brasil miscigenado ter nos dado o incomparável Garrincha, cuja natureza prima foge até à mais poderosa inteligência artificial. Milagre maior são os garrinchas que desabrocham, ano a ano, no morro, no asfalto, na periferia.
Carregam a invisibilidade comum à maioria do povo. Mas estão lá, na comunhão do moleque com a bola. Tortos, matreiros, incandescentes. Endiabrados, irreverentes, redentores, lá eles estão. Onde só as crianças e as nuvens alcançam.
A capacidade de iluminá-los aponta o horizonte que desejamos construir. Feliz 2024!
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.