Marcas indeléveis de uma final com o tamanho da América
À êxtase tricolor com a conquista, soma-se a ciranda de fé, agonia, epifania, de fragmentos épicos indispensáveis numa história que extrapola o esporte
Não é que a hora chegou. Materializou-se com a textura de um conto natalino. Só os muito incrédulos e os secadores ousaram duvidar.
Chegou animada e colorida que nem São João. Infinita igual beijo apaixonado. Radiante como o sol que traz o lindo dia. Ave, Cartola!
O clamor, a espera, a resiliência mereciam uma recompensa à altura. A hora havia de chegar.
Chegou como manda o figurino. Sofrida, intensa, redentora. Dionisíaca e delirante, próxima à vertigem felliniana. Fiel à caligrafia dos deuses.
O carnaval das torcidas, a explosão cromática, os gogós uivantes. Nem a bomba atômica concentra mais energia do que o Maracanã em carne-viva. Quando ele pulsa assim, as chuteiras nunca decepcionam.
Bandeiras, nervos e cânticos tremulavam a ansiedade acumulada por anos, meses, semanas. Rogavam a fé na dádiva iminente.
“Vamos, tricolores…”. O profético refrão reunia os vivos e os mortos em torno da obsessão. A arquibancada cantou para os anjos ouvirem.
Seria ingênuo imaginar que os anjos da bola atenderiam sem concessões ao drama. O golaço de Cano, prêmio à tabelinha entre Arias e Keno, sofreria um contragolpe simétrico. Todos os medos acordaram com o tiro certeiro de Advíncula.
Levaria meia hora – uma torturante meia hora – até o canudo de John Kennedy, aos oito da prorrogação, espantar os fantasmas. Outro golaço. Título com gol na veia vale o triplo.
Diniz cantara a pedra ao atiçar, com a habitual eloquência, o pendor decisivo do atacante prestes a ganhar o gramado e a História. Premonitório, o discurso motivacional encontraria a mística do futebol e a posteridade das manchetes.
Até as cartomantes fajutas, reconheçamos, cravariam o destino soprado pelo treinador. Um destino esculpido no apetite de JK para romper defesas, na sua fase iluminada, no jeito moleque de jogar e de viver, nas superações que o calejaram. Cartilha de herói em erupção.
Roteiro desses não dispensa um verniz épico. Então inventaram o despejo boçal de John Kennedy. Excedera-se na comemoração, justificou o árbitro.
Excessivo foi o castigo protocolar. Puniu a alegria incontrolável das consagrações, sem a qual o esporte não seria o que é. Maldade.
Ora, sob o calor da façanha heroica, quem não voaria para a galera? Quem não tardaria a descer do paraíso? Fora, talvez, as caretas, ninguém na galáxia teria feito diferente. Nem o juiz, nem os cartolas nas tribunas, nem o mais comportado dos mortais.
O arremate antológico, para se rever um milhão de vezes, e o seu autor pertencem à galera, reciprocamente, tanto quanto os aplausos pertencem ao solista arrebatador de um concerto. Nenhuma expulsão consegue separá-los.
O gol prenunciado, êxtase para os devotos do Fluminense, alcança a universalidade da beleza. A ajeitada de Keno e a bomba de JK formam uma rima perfeita. Coisa de almanaque.
Amputada do jovem talento, a equipe carioca venceria o cansaço, a perseverança argentina, a assombração dos pênaltis. Suplantaria o tempo perversamente arrastado.
Artérias na boca, torcedores oscilavam entre o receio de novo empate e o aroma da glória. Agonia estendida por 26 minutos. Intermináveis.
Alguns fechavam os olhos com fervor. Garimpavam no escuro alívios sonoros. Outros deram as costas ao campo. Refugiavam-se nos corredores do estádio. Andavam neuroticamente de um lado ao outro, como peregrinos aflitos pela salvação.
Escalavam os santos, as forças ocultas, as mandingas. Tais momentos desconhecem ateus.
A noite transformou a angústia em euforia. Justa, invejável, contagiante. Construída no quintal de casa.
Agora o tempo não precisa mais correr, sonham os tricolores estacionados no inesquecível 4 de novembro. Lá flutuarão, loucos da cabeça, enquanto suas almas respirarem.
Nesse recanto mágico, lambuzado de orgulho e epifania, podem reviver a comunhão com os atletas e o técnico imortalizados pela conquista da primeira Libertadores. Podem rever as esquinas vestidas de verde, vermelho e branco.
O trono continental reforça a vocação do Flu à eternidade, diria Nelson Rodrigues. Doura a grandeza do clube secular, acima dos resultados. Aguça a perspectiva de saltos esportivos e econômicos. Harmoniza passado e futuro.
O troféu, a faixa no peito, os 5 a 1 no River, a virada no Beira-Rio, as pinturas de Cano e JK, a consistência de André, pedindo passagem na seleção, a habilidade de Arias, tudo isso incorpora-se ao imaginário. Um banquete à memória afetiva.
Nada supera as marcas indeléveis que uma decisão com o tamanho da América lega ao Rio. Extrapolam estatísticas, receitas, performances.
Estão simbolizadas, por exemplo, no dueto entre Gérman Cano e a torcida. Fatura liquidada, entoaram juntos o samba da apoteose tricolor. Síntese da afinação com os fãs, com o Maraca, com a cidade.
Sentado na trave, o artilheiro da Liberta, 13 gols, estampava a felicidade soberana do menino que descalça o mundo e saboreia, no alto da mangueira, a fruta colhida.
A cena lembra a importância dos fragmentos imateriais, inestimáveis, que compõem feitos históricos. Neles se debruça a empolgação de Nelson Rodrigues com o Fla-Flu de 1969 (3 a 2 para o Tricolor), “o maior de todos os tempos”:
“Daqui a 200 anos, a cidade dirá, mordida de nostalgia: ‘Aquele Fla-Flu!’ Ah, quem não esteve ontem no estádio Mário Filho não viveu. E o Fluminense fez uma exibição perfeita, irretocável. Lutou com a alma indomável do campeão. Ninguém conquista o título num único dia. Não, um título é todo sangue, todo suor e todo lágrimas de um campeonato inteiro”.
Amém.
Esta crônica é dedicada, em especial, a Yuval Brafman. Aos 20 anos, o coração tricolor bate a 10 mil quilômetros do Maracanã, aturdido pelos horrores da guerra.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.