O futebol brasileiro anda a cortejar a realidade paralela. Onde os apelos à vida viram mimimi. Onde máscara, distanciamento, vacina – nossas tábuas de salvação – denotam covardia, contrariam o self masculino esculpido na ordem machista. Onde a ciência e o senso humanitário agonizam no moinho da indiferença, do negacionismo, do oportunismo. Onde se amordaça o lembrete do poeta John Donne: nenhum homem é uma ilha. O futebol, logo o futebol, orgulho nacional, não deveria cair nessa.
À complexa calibragem da quarentena, impõe-se a urgência de estancar a pandemia num país transformado em ameaça continental e global. O perigo escalou as páginas do Guardian e os amplificadores da Organização Mundial da Saúde. Ressoam o prognóstico emitido pelo crescimento das transmissões e internações. Só não ouve quem não quer.
As quase duas mil mortes diárias decorrentes da Covid-19 esgotam a margem paliativa. Nesta toada, poderemos chegar a três mil nas próximas semanas, admite o Ministério da Saúde.
Autoridades científicas clamam severidade para conter a circulação do vírus e suas variações. Assim já fizeram os países desenvolvidos. Europeus retomaram os torneios só depois do controle razoável do inimigo invisível. Mesmo longe disso, a bola corre solta por aqui.
A recomendação de táticas mais restritivas inclui, é claro, as instâncias do esporte. Cumpri-la, ao menos considerá-la, seria prerrogativa de clubes e federações. Dispensaria decretos ou imposições do Ministério Público. Bastaria o respeito aos fatos, à vida, à governança, ao outro.
Na contramão da História, dirigentes cogitam o retorno do público aos estádios. Desprezam a circunstância crítica e os esforços conjuntos para desacelerar a pandemia às portas do colapso. Ensaiam o oposto das prescrições científicas, morais, gerenciais.
Remodelações das disputas têm de voltar à pauta prioritária dos gestores. Equacioná-las com orçamentos, ambições políticas e econômicas, engenharias logísticas, contratos, com o asfixiado calendário, configura-se um desafio inadiável. Uma emergência de guerra. Ficará mais difícil vencê-la se a responsabilidade for cozida em banho-maria ou transferida à administração pública sob a nuvem da desarticulação e do populismo.
“Sem saúde, não há economia”, reconheceu finalmente o ministro. Tomara que a elementar dedução desperte a cumplicidade das correções de curso.
Perdas inestimáveis, os brasileiros abatidos pelo descaso representam tanto um desfalque exponencial aos cofres públicos e privados quanto um atraso à recuperação socioeconômica. O campo esportivo não constitui uma Disneylândia à parte. Não é uma bolha, como alguns acham ou fingem achar.
Desses distanciou-se o técnico do América-MG, ironicamente chamado de “Doido”. Cobrou da CBF a revisão da maratona de viagens alheia ao avanço da crise sanitária. “Estamos apavorados”, desabafou Lisca, com a habitual extroversão e a previdência que lhe faltara em novembro, ao comemorar no meio da galera o salto à semifinal da Copa do Brasil.
Aquele deslize não desqualifica o chamado à sensatez. Pelo menos uma parcela dos 320 casos de Covid entre jogadores e treinadores ao longo do Brasileiro derivou dos 40 mil quilômetros percorridos, em média, por cada delegação. O contágio ascendente aumenta os riscos das viagens.
Deles tentam se precaver vizinhos como Colômbia e Peru. Acompanham as restrições e suspensões à entrada de brasileiros impostas noutros cantos do globo. Elas tendem a endurecer diante da advertência da OMS: “Se o Brasil não for sério, continuará a afetar toda a vizinhança e além”, diagnosticou o diretor-geral, Tedros Ghebreyesus”. Eis um certificado de pária internacional.
O alerta vermelho mergulha em incertezas organizadores e participantes de Libertadores, Sul-Americana, Eliminatórias para a Copa – cujas rodadas de marco acabaram adiadas. A prudência haverá de reservar destino semelhante a outros jogos.
Viagens externas e internas, elas sim, formariam uma bolha. Uma bolha de irresponsabilidade na pior fase da pandemia. Um reforço à banalização de absurdos.
Algumas vozes ecoaram a pedra cantada por Lisca. Do presidente santista, Andrés Rueda, ouviu-se o óbvio: “Vale qualquer medida para salvar uma vida”. É pouco.
Executivos, atletas, treinadores, patrocinadores deveriam conduzir um alinhamento do setor à conjunção de empenhos para vencer o capítulo mais trágico da nossa trajetória moderna. Lideranças como o saudoso Sócrates não perderiam o bonde.
Às razões humanitárias, suficientes para o engajamento coletivo, somam-se mais duas. A primeira recruta uma consciência setorial-trabalhista: a pandemia amplia o fosso entre a minoria do andar de cima e a maioria desassistida dos 650 clubes profissionais no país. A outra razão é pragmática: quanto mais organizações se afastam da responsabilidade social e da governança, menos atraem consumidores e investidores.
Tais compromissos são reconhecidos pela sigla ESG (environmental, social, governance), um selo de sustentabilidade cada vez mais imperioso no mundo inteiro. Logo se tornará imprescindível ao ingresso no tabuleiro político e comercial. Se não acordarmos a tempo, os pesadelos se tornarão inevitáveis.
A alternativa frequenta o cardápio do dia: pílula azul de Matrix. Fuga à realidade paralela. Mas seus danos nada têm de ficcionais.
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Par de alentos
Por falar em ficção, o singelo Rosa e Momo (Itália, 2020 / Netflix) lega duas preciosidades musicais. Laura Pausini lustra a bela Io Si (Seen). Não por acaso faturou o Globo de Ouro de melhor canção original. Um bálsamo.
De quebra, o longa dirigido por Edoardo Ponti tem Sophia Loren dançando ao som de Malandro, composição de Jorge Aragão e Jotabê lançada por Elza Soares em 1976. Nesses tempos bicudos, Elza e Laura são um alento.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formadoy também em Educação Física.