Carnaval e futebol guardam afinidades além da caligrafia na identidade cultural brasileira. Partilham histórias e personagens indispensáveis às mesas de bar e ao autoconhecimento. Algumas são revisitadas pela série documental “Doutor Castor”, dirigida por Marco Antonio Araújo, recém-lançada na Globoplay e no SporTV. Os quatro capítulos orbitam as jogadas do bicheiro Castor de Andrade, mecenas da Mocidade e do Bangu nos anos 1980. Imagens preciosas e depoimentos afiados revivem interseções entre o samba, a bola e o submundo carioca.
A coça sobre o árbitro Ricardo Manhães, na decisão do Carioca feminino de 1983, é uma das passagens emblemáticas. Logo depois de apitar o fim da partida, Ricardo foi perseguido por Castor, seguranças armados, atletas, torcedores. Pagou o pato pela derrota do Bangu, dono da casa, para o Radar.
O documentário costura as cenas do princípio de linchamento e da previsível pizza judicial com relatos da época e atuais. A sequência ocupa o trecho final do primeiro capítulo. Retrata mais do que uma chanchada típica dos alçapões. Revela uma cruz dos tristes trópicos: violência material e simbólica concedida por relações não raramente incestuosas entre o poder paralelo, o poder oficial e a cultura popular.
Outra tabela histórica entre futebol e carnaval remonta a 1975. Naquele sábado, 8 de fevereiro, 40 mil tricolores recebiam Rivellino no Maracanã. Empolgavam-se com a primeira transação grandiosa do mercado da bola doméstico, prenúncio de um time arrebatador.
O craque abdicara do trono corinthiano para ser coroado também nas Laranjeiras. Retribuiu logo com três gols na estreia, 4 a 1 sobre o ex-clube. O terceiro, de cobertura, era um aperitivo das belezas que orquestraria nos dois anos seguintes à frente da Máquina. Poucos times no mundo concentraram cobras como Carlos Alberto Torres, Carlos Alberto Pintinho, Dirceu, Paulo César Caju, Marco Antônio, Mário Sérgio, Edinho, Gil, Doval. Riva foi a cereja do bolo.
A apoteose em verde, branco e grená teve ainda desfile da Mangueira. Sacudiu a geral no intervalo. (O verde, par do rosa mangueirense, foi uma homenagem de Cartola, fundador da Escola, ao Fluminense do coração. Fica para outra prosa.) Ao espetáculo esportivo, somava-se o baile de marketing empreendido por Francisco Horta. O timaço, seu inebriante Camisa 10, o carnaval de boas-vindas, tudo obra do “presidente eterno”.
Rivellino representava a dimensão do ídolo, cujos super-poderes não vêm propriamente do alto rendimento, das vitórias. Vêm da capacidade de mover sonhos, horizontes, paixões, de derrubar barreiras, fronteiras, preconceitos. Vêm da força integradora energizada pela empatia, da habilidade em reconhecer a grandeza nas coisas miúdas, da maestria em harmonizar o global e o local. A fama não lhes trai. Ingredientes comuns, por exemplo, a Senna, Hortência, Guga, Zico.
Tais virtudes conferem ao ídolo o poder mais cobiçado pelas engrenagens do consumo: influência sobre multidões de gostos e comportamentos. Porém um campeão de seguidores online, embora precioso à indústria esportiva, não constitui necessariamente um ídolo. As chaves do Olimpo lhe chegam pelas mãos do insondável.
O êxtase de um amigo ao surpreender-se com o campeão mundial de surfe Ítalo Ferreira ali nas mesmas ondas da Cacimba do Padre transcendia a admiração, a reverência ao mérito esportivo. Extrapolava o registro para a posteridade efêmera do Instagram. A relação entre fã e ídolo desconhece o efêmero. O mundo esfumaçava-se na eternidade dos minutos compartilhados na praia de Noronha. Ídolos têm o dom da eternidade.
Ao importar Rivellino do Parque São Jorge, Horta confiou no lastro do ídolo para honrar a ousada contratação, liderar uma máquina de jogar bola, amealhar corações, agigantar o futebol do Flu e do Rio. Deu certo. Rivellino e a Máquina Tricolor fizeram história. Mais que vencer, encantaram. Conquistaram dois Estaduais e reconhecimento internacional. Bateram o todo-poderoso Bayern de Beckenbauer, base da Alemanha campeã mundial em 1974 (1 a 0, gol contra de Gerd Müller). O amistoso contra os bicampeões europeus (74-75), no Maraca lotado, era mais uma aula de marketing de Francisco Horta.
Iniciativas assim namoram hoje o inalcançável. Menos pelo calendário asfixiante do que pela dificuldade crescente em reter talentos e formar ídolos. Consequência de visões imediatistas, lapsos administrativos, fragilidades financeiras (inclusive do país), conchavos políticos. Um terreno fértil à terceirização dos direitos econômicos dos diamantes em maturação e ao êxodo prematuro desses patrimônios.
Metinho e Kayky são os mais recentes símbolos da exportação precoce. Campeões do Brasileiro Sub-17, o meia e o atacante deixarão as Laranjeiras no fim do ano. Chegarão ao auge físico, técnico e tático num dos clubes do City Group. Renderão ao Fluminense entre R$ 100 milhões e R$ 250 milhões. Nada mal, especialmente diante do atrofiado cacife de grandes clubes nacionais. Nem tanto…
Os garotos bons de bola renderiam bem mais, caso consumassem deste lado do Atlântico o potencial de craques e amadurecessem outra máquina capaz de engrenar títulos, audiências, receitas. O céu seria o limite se, além de craques, virassem ídolos. A ciranda deficitária privou dessa oportunidade as promessas e os torcedores. Não irão remoê-la os jovens rumo à independência financeira e à carreira internacional.
Já o torcedor caminha órfão de ídolos. Cata migalhas que renovem a esperança de curtir os talentos florescentes, senão pelo tempo necessário para se tornarem ídolos, ao menos por uma, duas, três temporadas. Tempo suficiente para saudá-los na arquibancada, para vê-los arrebentar no quintal de casa, para habituar-se com seu número, sua escalação, para ouvir o bamba da pracinha sendo chamado por seu nome.
Estancar a sangria prematura de potenciais craques ou ídolos revela-se um desafio complexo. Mas não deve carregar a pedra do impossível. Ou teremos de, como agora na pandemia, nos contentar com a memória afetiva de outros carnavais.
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Carnaval também lembra o saudoso Lula Branco Martins. Lula era mestre da cobertura carnavalesca em publicações cariocas, inclusive a Veja Rio. Torcedor do América, estendia sua indefectível criatividade a composições de samba-enredo para a Unidos da Tijuca e listas de todo tipo (os dez gols mais bonitos do Maracanã, por exemplo). Adorava arquitetá-las, apesar do pacto com a exclusão. Por isso listas têm a polêmica no sangue.
As listas dos melhores do Brasileiro estão longe da exceção. A brincadeira é justamente essa: discordar, cornetar, polemizar. Então lá vai uma cornetada: Gerson (Flamengo) e Luccas Claro (Fluminense), além de Claudinho (Bragantino), barbada como destaque da competição, não podem ficar fora de nenhuma delas. Ninguém dominou mais o meio-campo, ao longo deste campeonato, do que Gerson. Nenhum outro zagueiro superou a eficiência regular de Luccas. Feito o pitaco.
E o mais importante: a torcida para o Botafogo, que tantos craques e ídolos nos legou, recupere logo a luminosidade.
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Por falar em luminosidade, felizmente a terra nos deu Maria Bethânia. Brisa de sensibilidade, potência, afinação. Brisa de luz. Ouvi-la é molhar o pé no mar. “Eu quero vacina, respeito, verdade e misericórdia”, resumiu a filha Santo Amaro na abertura da apresentação deste sábado. Lá pelas tantas, lembrou oportunamente Cecília Mereiles:
“A primavera chegará,
mesmo que ninguém
mais saiba seu nome,
nem acredite no
calendário, nem possua
jardim para recebê-la”
Bethânia é um rio que passa e leva, enleva, nossos corações.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.