O cotovelo doído esnoba a tricampeã: fora o Messi, nada de mais. Passada a ressaca da Copa, ainda ecoa aqui e ali o desdém transformado em refúgio. Lamúrias de Pierrô prematuramente retirado do carnaval, a Colombina noutros braços.
Enquanto lhe respinga o confete alheio, resta reconhecer a apoteose azul e branca. Não constitui samba de uma nota só.
A maestria do camisa 10 é correspondida pelos coadjuvantes. Dedilham a histórica partitura argentina: habilidade, consistência tática, fibra. Pouco importa o conjunto ter se afinado com o baile começado.
A orquestra harmônica não diminui o peso decisivo do solista. Respeitados os recordes e, sobretudo, as pinturas de Mbappé – 12 gols em duas Copas –, há muito nenhum mortal se aproxima de comer a bola feito Messi.
O maior craque desde Maradona extrapola o título mundial e as lautas estatísticas. Basta vê-lo em cena para identificar a divindade.
A pelota e o pé abraçados que nem arroz e feijão, siameses. As arrancadas de Fórmula 1. Os passes cirúrgicos. Os coelhos da cartola. A canhota calibrada. O pacto com a simplicidade.
Messi desfila a transcendência da arte, a clarividência dos gênios, a eletricidade de quem está dois passos à frente. Nem por isso se deslumbra. Quando rabisca diabólico, inalcançável como vapor, não há ouro ou vaidade que desvie o rumo do gol.
A poesia vertical volta e meia explode em maravilhas como o balé coroado com o arremate de Álvares contra a Croácia. Messi é possuído por uma incandescência prima, contraponto à cuca serena, ao sorriso manso. Tal mistura enverniza o ídolo.
O fulgor ofensivo abre janelas à regência. Também por falta de opções, ele acumula o papel de pensador. Sorte dos hermanos.
A escassez de regentes revela-se pandêmica. Argentina, França, Brasil, quase todos os times e seleções padecem desta ausência crônica. Xavi, campeão em 2010; Kroos, em 2014; e Modric, vice em 2018, configuram-se exceções.
Desde o fim do século passado, armadores sumiram progressivamente. Equipes do mundo todo passaram a preferir meias versáteis, pujantes, supostamente adequados à competitividade de um futebol com mais pulmão e menos espaço.
O resultado é a globalização de um hiato entre volantes polivalentes – como nos escretes argentino, francês, brasileiro – e meias-atacantes. Certas variações táticas até dissimulam ou compensam razoavelmente o buraco. Não a ponto de torná-lo irrelevante.
Seria tolo imaginar uma incompatibilidade entre a cadência do armador e o bem-vindo aumento da intensidade esportiva. Pelo contrário, dele nasce muitas vezes a velocidade necessária ao contra-ataque. Outras vezes, quebra o ritmo até esculpir a melhor jogada.
Comum aos grandes times, o armador converte a batuta em beleza, ousadia, eficiência, encanto. Embala conquistas e aplausos. Vestia a 8. Mais que número, um conceito. É preciso reavivá-lo.
Didi, Gerson, Ademir da Guia, Falcão, Júnior, Geovani, Djair, Juninho Pernambucano, Deco, Ricardinho, Ganso, exemplos de gerações e cores distintas. Agradeceríamos a Noel se a fábrica de onde vieram reencontrasse a História e voltasse a pulsar alto.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.